Será mesmo que corremos o risco de perder o nosso direito de pensar livremente?
Ao acordar de manhã, você pensa em ligar a televisão para assistir um episódio da sua série favorita enquanto toma o café, mas eis que o seu dispositivo sugere: “Há um novo livro recomendado para você ler e expandir seus horizontes.”
Ou então, vai chegando o horário do almoço e você se imagina saboreando aquele delicioso fettuccine, quando de repente, uma notificação surge no seu celular dizendo: você não prefere comer algo mais saudável?
Quando comecei a escrever esse artigo fui questionada em casa se o assunto não fugia da minha profissão e área de atuação, ao que respondi com o convite à leitura do resultado final.
Sabemos que independentemente dos avanços que ainda estão por vir, com tudo o que as mídias sociais e diversos aplicativos já sabem ao nosso respeito, a liberdade e privacidade de nossos pensamentos já estão sob risco há tempos.
Mas você já imaginou sensores em contato direto com a nossa cabeça, ou seja, capturando as atividades do nosso cérebro? Parece ficção, mas estamos falando de neurotecnologia que, por definição, compreende uma série de técnicas que permitem a interação direta entre o cérebro humano e a tecnologia, ou seja, qualquer tipo de dispositivo ou procedimento projetado para acessar, monitorar, investigar, avaliar, manipular e/ou emular a estrutura e a função dos sistemas neurais.
Estamos falando de interfaces cérebro-computador (BCI), estimulação cerebral profunda, membros robóticos, implantes cerebrais e muito mais, por meio dos quais os nossos dados neurais (que são gerados para além do nosso controle e inconscientemente), são tratados.
Como muitas, essas inovações têm o potencial de revolucionar tratamentos médicos, permitindo, por exemplo, que pessoas com paralisia se comuniquem, que as que possuem lesões na medula espinhal sejam capazes de controlar próteses com a mente e que sintomas de doenças neurológicas, como Parkinson e até mesmo depressão sejam aliviadas.
Mas você deve estar se perguntando: como fica a questão da privacidade, proteção desses dados cerebrais e o controle sobre nossos próprios pensamentos? Sim, porque enquanto as inovações em neurotecnologia oferecem promessas de tratamentos médicos revolucionários e melhorias na qualidade de vida, questões éticas e legais importantes também são suscitadas.
E é aí que entra o neurodireito, essencial para garantir que os avanços da neurotecnologia respeitem os direitos fundamentais do indivíduo. O neurodireito, conceito desenvolvido pela NeuroRights Foundation na Universidade da Columbia, pode ser definido como uma nova estrutura jurídica internacional de direitos humanos destinado especificamente a proteger o cérebro e sua atividade à medida que avança a neurotecnologia.
Estamos falando de questões complexas, como a proteção da privacidade cerebral, a autodeterminação e a responsabilidade legal por ações realizadas por meio de tecnologias cerebrais. Afinal, com o desenvolvimento de tecnologias que podem ler e manipular a atividade cerebral, surgem preocupações legítimas sobre a privacidade e a segurança dos dados cerebrais, sobretudo pela capacidade de se acessar e interpretar os pensamentos das pessoas, o que aliás, levanta questões éticas bastante significativas.
Existe forma mais íntima de expressão de nossa individualidade do que o nosso pensamento? E saber como e onde essas informações serão armazenadas e quem terá acesso a elas é o mínimo que se pode exigir, já que as implicações podem ser enormes, tanto em termos de segurança quanto de potencial abuso.
Não por acaso, recentemente a Unesco liderou um diálogo global via Conferência Internacional sobre Ética na Neurotecnologia, defendendo a inquestionável necessidade da implementação de regras robustas de integridade, privacidade e liberdade mental.
Quanto aos avanços legislativos, a América Latina tem sido a vanguarda desta discussão ao redor do mundo. Em setembro de 2021, o Chile se tornou o primeiro país do mundo a incluir oficialmente os neurodireitos na Constituição.
Um outro marco importante foi a aprovação em 2023, pela Organização dos Estados Americanos (OEA), da Declaração Interamericana de Princípios sobre Neurociências, Neurotecnologias e Direitos Humanos demonstrando um compromisso com a proteção dos direitos individuais em face dos avanços da ciência cerebral.
Quanto ao Brasil, em andamento na Câmara dos Deputados, Projeto de Lei nº 522/2022, que “modifica a Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), a fim de conceituar dado neural e regulamentar sua proteção”.
Seguindo o exemplo do Chile, tramita também no Congresso a Proposta de Emenda Constitucional n.º 29/2023 (Dra Camila Pintarelli trás detalhes sobre a tramitação da PEC neste link), que objetiva incluir, como direitos fundamentais, a proteção à integridade mental e a transparência algorítmica, alterando o artigo 5.º, LXXX da CF/88, nos seguintes termos: “LXXX – o desenvolvimento científico e tecnológico assegurará a integridade mental e a transparência algorítmica, nos termos da lei”, mais um importante passo nesse diálogo, garantindo que os avanço da neurotecnologia e da inteligência artificial ocorram em benefício das pessoas e sempre privilegiando a proteção da dignidade humana.