Do Jurídico Operacional ao Jurídico de Produto: O Que Muda na Prática?

Durante muito tempo, a atuação do jurídico dentro das empresas foi quase exclusivamente reativa. A demanda vinha, o jurídico respondia. A área de negócios pensava, decidia e executava; o jurídico validava, mitigava riscos, apontava o que “pode” ou “não pode”. O padrão era previsível, ainda que pouco eficiente: o jurídico entrava no processo na fase final, com foco em conformidade, responsabilidade ou correção.

Mas o jogo mudou — e não foi por acaso.

Nos últimos anos, o modelo tradicional de negócios foi profundamente impactado por três movimentos simultâneos: a transformação digital das empresas, a aceleração regulatória em setores estratégicos e a exigência crescente de decisões jurídicas ágeis, contextualizadas e orientadas por impacto. Nesse novo cenário, o jurídico que apenas “opina” ou revisa cláusulas está ficando para trás.

Hoje, ganha espaço quem constrói junto. E é justamente aí que entra o conceito de jurídico de produto — uma nova forma de atuação que exige do advogado muito mais do que técnica. Exige visão de negócio, escuta ativa, adaptação constante e capacidade de influenciar decisões estratégicas com base no que ainda nem aconteceu.

Mas, afinal, o que é o jurídico de produto?

O termo ainda é recente no Brasil, mas carrega uma mudança profunda na lógica de atuação. O jurídico de produto não é uma nova área, mas uma nova abordagem: o advogado deixa de atuar apenas por processos ou departamentos e passa a se posicionar como um parceiro contínuo das squads ou das células que desenvolvem os produtos e serviços da empresa.

Isso significa, na prática, que o jurídico se insere desde a concepção do produto — e não apenas na hora de registrá-lo, contratá-lo ou defendê-lo. A pergunta deixa de ser “esse contrato está juridicamente correto?” e passa a ser “qual o melhor modelo contratual, regulatório e estratégico para viabilizar esse produto com segurança e velocidade?”

Na prática, é como se o jurídico deixasse de ser uma torre isolada e passasse a atuar como um nó fundamental da rede que conecta tecnologia, marketing, financeiro, vendas e operações. E isso exige do advogado uma nova postura, novas habilidades e — principalmente — um novo olhar sobre o próprio papel que exerce.

O que muda, na prática?

  1. Da validação à construção conjunta
    No modelo tradicional, a área de produto desenvolve algo e, ao final, “leva” ao jurídico para revisão. No modelo de jurídico de produto, o advogado acompanha todo o processo de ideação, valida riscos desde o início, propõe alternativas legais viáveis e atua como designer regulatório da solução.
  2. Do foco em risco ao foco em impacto
    É claro que o papel do jurídico continua sendo zelar pela conformidade e pela segurança jurídica. Mas, no novo modelo, o foco não está apenas no risco — está no impacto: como viabilizar, acelerar, estruturar ou pivotar um produto com base nas possibilidades que o Direito permite?
  3. Da linguagem jurídica à linguagem do negócio
    Advogados que atuam com produto precisam traduzir conceitos legais para decisões práticas. Precisam se comunicar com times multidisciplinares, muitas vezes não jurídicos, e alinhar-se a métricas como CAC, LTV, NPS, churn ou até conversão de funil. Ou seja: precisam falar a língua da empresa, não apenas do Código Civil.
  4. Da rotina previsível à ambiguidade constante
    Ao atuar com produto, o advogado entra em ambientes de alta incerteza. Não há respostas prontas, precedentes consolidados ou legislação clara. Muitas vezes, trabalha-se com regulação em construção (open finance, IA, marketplaces, saúde digital). Aqui, o advogado precisa navegar com responsabilidade, mas também com coragem.

E o que isso exige do advogado corporativo?

Essa mudança de abordagem não se resolve com um curso técnico ou uma nova ferramenta. Ela exige uma verdadeira reinvenção da atuação jurídica. Alguns pontos são particularmente importantes:

  • Leitura de contexto: o advogado precisa entender o momento do produto, o modelo de negócio, o público-alvo, o setor e o grau de maturidade da empresa. O que funciona em uma startup pode não funcionar em uma multinacional — e vice-versa.
  • Escuta ativa e empatia com as áreas: atuar com produto exige compreender os desafios de quem está no comercial, na tecnologia, na área de experiência do cliente. Exige escuta, presença e disposição para construir junto.
  • Senso de urgência e pragmatismo: em geral, as decisões precisam ser tomadas rapidamente, e a resposta “vou analisar e te retorno em 10 dias” simplesmente não funciona. O advogado precisa saber priorizar, simplificar e decidir.
  • Capacidade de propor — e não apenas aprovar: a atuação proativa é a essência do jurídico de produto. O advogado não espera ser chamado — ele levanta hipóteses, propõe soluções, desenha cenários e, muitas vezes, antecipa entraves antes que eles surjam.

Por que isso importa?

Porque o jurídico de produto já é uma realidade em setores como tecnologia, financeiro, seguros, saúde, educação e varejo digital. Startups, scale-ups e grandes empresas que operam com agilidade já não enxergam o jurídico como uma área “separada” — e sim como um parceiro estratégico.

E isso muda tudo. Inclusive, as oportunidades de carreira.

Cada vez mais, empresas buscam profissionais jurídicos que entendam como um produto digital é lançado, como uma fintech opera, como um regulador atua em ambiente inovador ou como uma estrutura societária pode acelerar um go-to-market.

O técnico ainda é necessário. Mas o diferencial está na capacidade de fazer o jurídico caber dentro do negócio — sem renunciar à segurança, mas com consciência de que inovar exige também saber até onde o risco é aceitável. E isso só se aprende vivendo — e se preparando.

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