Pude me aprofundar nas reflexões sobre o delawyering a partir do convite feito pelo Prof. Dr. Emerson Ribeiro Fabiani, da FGV Direito SP, para escrever o artigo “Delawyering, automação e emprego de TI na advocacia”. O texto está presente na última edição da Revista Jurídica Profissional da FGV, cuja leitura recomendo. Como advogado há quase três décadas, é inevitável pensar as questões do nosso tempo. Hoje, atividades essencialmente jurídicas, como análise de processos, elaboração de petições e redação de contratos são realizadas com mais velocidade e menor custo por algoritmos que não têm OAB. Se a inteligência artificial já executa boa parte da rotina jurídica, o que decidiremos manter na operação? Se os nossos concorrentes não são apenas outros advogados, mas também desenvolvedores, cientistas de dados e startups com cultura ágil, o que temos a oferecer que eles não tenham? Não creio que a tecnologia extinguirá a profissão, mas certamente extinguirá o conforto de ser advogado. E neste momento, quem ainda está confortável, é porque ainda não entendeu o momento.
O fenômeno do delawyering, isto é, a tendência à execução das atividades jurídicas por tecnologia ou por profissionais não advogados, consolida-se silenciosa e estrategicamente na advocacia. Inicialmente observado nas rotinas de backoffice, como cadastramento de processos, tratamento de obrigações de fazer e liminares, dentre outros, a tendência agora atinge atividades de maior valor agregado: elaboração de peças, pesquisa jurisprudencial, negociação de acordos e análise de riscos. Essa transformação é impulsionada por dois motores: o primeiro é a pressão econômica por eficiência e redução de custos; o segundo, mais profundo, é tecnológico. Plataformas de automação, inteligência artificial generativa e jurimetria se tornaram acessíveis, confiáveis e, principalmente, escaláveis. As ferramentas de hoje disponíveis no mercado não apenas apoiam a jornada jurídica, elas a redefinem.
Ao permitir a automação de tarefas repetitivas, a tecnologia viabilizou a ascensão de legaltechs e dos Alternative Legal Service Providers (ALSPs), que se estabeleceram como alternativas mais enxutas e tecnológicas em relação aos escritórios tradicionais. Sem as amarras regulatórias da OAB, essas empresas criaram operações com estruturas multidisciplinares, gestão orientada por dados e foco em desempenho — muitas vezes, com maior sofisticação tecnológica do que os próprios escritórios que terceirizaram seus serviços. O surgimento de soluções baseadas em grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT, expandiu os limites do delawyering. Softwares que compreendem o contexto de processos judiciais, sugerem estratégias contratuais, extraem fundamentos jurídicos e simulam desfechos judiciais estão remodelando a advocacia. O advogado, nesse novo cenário, não desaparece. Mas muda de lugar: de executor técnico para estrategista de alto nível e curador de dados.
Isso impõe novos desafios éticos e de governança. Como garantir a qualidade do serviço prestado se parte dele é produzida por algoritmos? Como mitigar riscos de responsabilidade civil e disciplinar? A recente recomendação do Conselho Federal da OAB sobre o uso de IA na advocacia foi um passo importante, mas insuficiente. Outro ponto crítico é a formação jurídica. O modelo tradicional, centrado em memorização de normas e no dogmatismo jurídico, não prepara os novos profissionais para um mercado cada vez mais orientado por dados, automação e pensamento crítico. Gestão de projetos, ciência de dados, workflows e design de soluções deveriam ser disciplinas obrigatórias em qualquer curso de Direito que se pretenda contemporâneo. Para os profissionais formados há mais tempo, o desafio é o da reinvenção: desaprender para reaprender. Isso exige humildade, disciplina e visão de futuro.
Em resumo, o delawyering não é uma ameaça à advocacia, mas à sua estagnação. Ele representa uma oportunidade rara de reposicionar a profissão como atividade estratégica, conectada ao negócio, baseada em dados e movida por propósito. Em um país com mais de um milhão de advogados, o diferencial não será apenas conhecer o Direito. Será saber usá-lo com tecnologia, eficiência e inteligência. A tecnologia não vai acabar com os advogados. Vai acabar com o conforto de ser um advogado que não evolui.