A Advocacia e os Direitos Humanos das Mulheres

Luanda Pires e Fernanda Perregil*

A discussão a respeito da necessidade do combate às discriminações baseadas no gênero e defesa dos Direitos Humanos das Mulheres é antiga também na advocacia. Esperança Garcia, mulher vítima do processo de escravização da população negra, fora reconhecida pela OAB Piauí como a primeira advogada do Brasil após sua petição, enviada em 1.770 ao então Governador da Província do Piauí requerendo a defesa dos escassos direitos voltados às mulheres escravizadas, ter sido descoberta pelo historiador Luiz Mott.

De lá para cá fortaleceu-se o debate em torno dos Direitos das Mulheres. Prova disso é que em 1945 a Organização das Nações Unidas (ONU) assinou o primeiro acordo internacional em defesa dos princípios de igualdade entre homens e mulheres. 30 anos depois a organização oficializou a data de 08 de março como Dia Internacional da Mulher. Marcando o mês que se aproxima como período de reflexão e luta pela Garantia dos Direitos das Mulheres.

Todavia, a dificuldade no combate aos estereótipos e violências simbólicas que perpetuam valores culturais discriminatórios e excludentes ainda é protagonista. Por isso é preciso pensar nos reflexos dessas violências de gênero e como a manutenção de padrões sexistas têm papel primordial para eternização dos padrões das sociedades colonizadas, repercutindo na organização das sociedades na atualidade.

A partir disso, entender que a repercussão direta dessas performances de gênero socialmente impostas é a divisão hierárquica e sexual do trabalho (separação entre trabalho produtivo e reprodutivo) e que essa hierarquização reflete no comportamento social dos homens e mulheres.

Existe um fenômeno chamado de “teto de vidro” que explica a discriminação em razão do gênero no mercado de trabalho. São as barreiras “invisíveis” que as mulheres enfrentam para acessar e permanecer no mercado. Esse fenômeno escancara o quanto são discriminadas e julgadas em razão do gênero e não da capacidade intelectual.

Porém, é muito importante pautar que, ainda que estejamos partindo da perspectiva de gênero, as dificuldades enfrentadas no mercado de trabalho não são as mesmas para todas as mulheres. Discriminações raciais, raciais-LGBTIfóbicas, contra PCDs e etárias, por exemplo, dificultam ainda mais o acesso e permanência das mulheres pertencentes à esses grupos sociais, fazendo com que para elas o teto seja de titanium.

Hoje, as mulheres advogadas representam mais de 50% das cerca um milhão e duzentos mil pessoas advogadas inscritas na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Todavia, na última disputa à Presidência nas Seccionais, apenas 05 mulheres – brancas – foram eleitas presidentes das OAB´s dos seus Estados: Dras. Patricia Vanzollini – OAB/SP; Daniela Borges – OAB/BA; Claudia Prudêncio – OAB/SC; Marilena Winter – OAB/PR e; Gisela Cardoso – OAB/MT.

Apesar de representar verdadeiro marco, alguns fatos precisam ser avaliados: Por que, dentro de um universo de 27 Seccionais, apenas 05 mulheres foram eleitas? Por que todas as mulheres que foram eleitas são brancas? Por que em um órgão de classe tão antigo, composto majoritariamente por mulheres, nenhuma delas alcançou o seu mais alto posto que é a Presidência da OAB Nacional?

Os números demonstram também que não há equilíbrio quantitativo nas grandes bancas do país, sendo ínfima a quantidade de mulheres ocupando cargos de Direção ou Decisórios nos escritórios brasileiros. Da mesma forma que a quantidade de mulheres negras nesses espaços sequer pode ser avaliada, dada a falta de dados.

Segundo o IBGE, a sociedade brasileira é composta por 54% de pessoas declaradamente negras. Apesar de maioria populacional, de acordo com pesquisa realizada pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade, em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial (que é formada por importantes escritórios do país, com apoio do próprio Centro de Estudos e da Fundação Getúlio Vargas), a advocacia negra representa apenas 1% dos advogados e advogadas dos escritórios brasileiros.

Então, se cruzarmos os dados que temos em relação à quantidade de mulheres advogadas do país, que já são subrepresentadas, com o 1% de advogados e advogadas que compõe as maiores bancas do Brasil, em matemática simples poderemos concluir que o número de advogadas negras dentro dos grandes escritórios é praticamente nulo.

Nesse contexto, fica impossível fazer o recorte de orientação sexual ou identidade de gênero. Assim como não existem dados específicos sobre a advocacia feminina negra, não existe mapeamento que informe sobre a representatividade das advogadas lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais ou intersexos.

A divisão sexual binária do trabalho também faz com que as mulheres sofram diariamente para manterem-se nesses espaços. Práticas naturalizadas em nossa sociedade, como a cultura do assédio, cotidianamente “dizem” à elas – e todas aquelas pessoas que não performam os padrões socialmente construídos como masculinos – que espaços de trabalhos remunerados, valorizados, que fogem do papel reprodutivo e de cuidadora da própria família, não lhes pertence. 

O assédio, ao contrário do imaginado pelo senso comum, não está ligado à hierarquia e sim à dignidade da pessoa, possuindo como finalidade sua objetificação. No caso do assédio moral, é praticado através de condutas que tenham por objetivo atingir a autoestima, a estabilidade emocional, a autodeterminação e a evolução da pessoa dentro do ambiente de trabalho.

Já o assédio sexual se manifesta pela conduta de natureza sexual, seja fisicamente ou por palavras, gestos e propostas impostas à pessoa contra sua vontade, causando-lhe constrangimento. Tais comportamentos violam direitos fundamentais da vítima, como a liberdade sexual, intimidade, vida privada, honra, igualdade de tratamento, o valor social do trabalho e o direito ao meio ambiente de trabalho sadio e seguro, por exemplo.

De acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de 52% das mulheres economicamente ativas já foram vítimas de assédio sexual no trabalho. Além, segundo Levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa do Risco Comportamental, mais da metade dos profissionais brasileiros pratica ou tolera assédio em seu ambiente de trabalho. No mesmo sentido, pesquisa realizada pelo canal de carreiras (vagas.com) demonstrou que 52% das pessoas entrevistadas já sofreu algum tipo de assédio e 87,5% não denunciou.

Dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST) demonstram que após a vigência da reforma trabalhista, no final do ano de 2017, houve uma abrupta queda no número de novas ações judiciais no âmbito da justiça do trabalho (algo em torno de 30%). O principal motivo foi o novo regramento da reforma que obriga a parte vencida ao pagamento dos honorários sucumbenciais, além de outras despesas que devem ser arcadas com o processo (custas judiciais e honorários periciais).

Dessa forma, apesar das ações judiciais envolvendo assédio moral ou sexual apresentarem as dificuldades inerentes ao próprio direito tutelado, inclusive em relação a parte probatória, as mudanças proporcionadas pela reforma, principalmente no custo de uma ação trabalhista para a parte autora, podem ser vistos como fatores responsáveis pela diminuição no ajuizamento de novas ações desde 2018.

Por essa razão, o Brasil foi questionado pela OIT sobre violações às suas convenções internacionais. Sendo que a Organização classificou a reforma trabalhista brasileira como uma das normas violadoras, uma vez que uma justiça mais “cara” pode inibir a utilização desta via, impedindo o acesso à justiça.

Por outro lado, houve crescimento no número de denúncias recebidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e tal fato pode estar atrelado a facilidade proporcionada pelo órgão. Hoje, a comunicação desses crimes, ocorridos dentro do âmbito laboral, pode ser feita pelo aplicativo de celular: o “MPT Pardal” (disponível para todas as plataformas).

O aplicativo foi desenvolvido para facilitar a produção de provas relacionadas a denúncias de graves violações de direitos dos trabalhadores, potencializando a atuação do Ministério Público do Trabalho. Além disso, sem a necessidade de comparecimento presencial ou maiores formalidades, ele garante o sigilo do denunciante e, junto ao descritivo dos fatos, possibilita o envio de imagens, áudio e vídeo.

Ainda, os número do Me Too Brasil – organização sem fins lucrativos que atende gratuitamente vítimas de violência sexual, principalmente no ambiente de trabalho, por meio de sua plataforma (www.metoobrasil.org.br) – demonstram que o assédio sexual contra mulheres ainda é assunto a ser analisado e combatido no Brasil.

A OGN, que chegou ao país há pouco mais de um ano com o slogan “o silêncio acabou”, proporciona espaço de escuta e acolhimento qualificados, centralizado nas vítimas, através de sua rede de voluntárias (médicas, psicólogas, assistentes sociais e advogadas).   Segundo os dados, apenas no primeiro ano de funcionamento, recebeu 151 denúncias de violência sexual. Dessas, 77 mulheres utilizaram a plataforma para desabafar e contar sua história; as outras 74 buscaram por ajuda – sendo que 68 foram encaminhadas para rede de proteção do Estado.

Desta forma, fica evidente que da mesma forma que ainda persiste a necessidade de inclusão das mulheres dentro das organizações, a indispensabilidade do combate à padrões culturais que tornam esses ambientes extremamente violentos para todas é latente e deve ser realizado por meio de um esforço conjunto entre Estado e sociedade civil.

E a advocacia, que tem entre seus deveres legais a garantia da cidadania e da paz social deve ocupar lugar de protagonismo nesta luta. Utilizando-se dessa ferramenta que é o Direito não apenas para inserir as mulheres dentro de suas estruturas, como propiciando espaços de discussão qualificados para que avanços legais e sociais sejam alcançados.

¹ IOTTI, Paulo. PIRES, Luanda. A importância da Advocacia de Coragem na defesa dos direitos humanos. In: Migalhas, 31 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/350900/a-importancia-da-advocacia-de-coragem-na-defesa-dos-direitos-humanos. Acesso: 14/02/2022

² OAB NACIONAL. Institucional/Quadro da Advocacia – Quantitativo Total. Disponível em: https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/quadroadvogados. Acesso: 14/02/2022

³ OAB NACIONAL. Institucional/Ex-Presidentes. Disponível em: https://www.oab.org.br/institucionalconselhofederal/honorarios. Acesso: 14/02/2022

4 DAYRELL, Marina. Assédio volta a crescer no Brasil na pandemia após longa tendência de queda. In: O Estadão de S.Paulo. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/sua-carreira,assedio-volta-a-crescer-no-brasil-na-pandemia-apos-longa-tendencia-de-queda,70003969876. Acesso: 14/02/2022

5 MPT 2° REGIÃO. Aplicativo MPT Pardal foi utilizado para encaminhar mais de 11 mil denúncias de irregularidades trabalhistas em 2018. Disponível em: https://www.prt2.mpt.mp.br/622-aplicativo-mpt-pardal-foi-utilizado-para-encaminhar-mais-de-11-mil-denuncias-de-irregularidades-trabalhistas-em-2018. Acesso: 14/02/2022

*Fernanda Perregil

Advogada e Sócia da Innocenti Advogados. É head da área de Direito do Trabalho e práticas ESG. Mestranda em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas pelo UDF. Pesquisadora na Universidade de São Paulo – SP, no Núcleo de Trabalho além do Direito do Trabalho – NDTADT. Especialista em Educação Executiva em Direito do Trabalho Empresarial pelo Insper e em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Pós-graduanda em Direitos Humanos e Responsabilidade Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS).

Coautora de diversos livros e artigos publicados. No ano de 2019 foi reconhecida pelo Diretório Chambers and Partners como uma das pioneiras em Diversidade e Inclusão na área jurídica na América Latina. Coordenadora da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/SP, responsável pelo núcleo de mulheres LBTIs. Vice – Presidenta da Associação Brasileira de Mulheres Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos – ABMLBTI. Integrante da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+ da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

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