Tem horas em que tudo parece girar em torno da IA Generativa. Ela virou tema de evento, argumento de venda, tema fixo nas reuniões de liderança. Mas quanto mais converso com sócios, diretores e gestores, mais percebo que estamos vivendo um tipo de “autoengano”. A IA virou símbolo de movimento, não de transformação. O problema não está na tecnologia. Está na nossa pressa em parecer moderno sem mudar absolutamente nada na estrutura que realmente sustenta o jurídico.
A IA está sendo tratada como adereço. Como um enfeite bonito sobre operações que continuam cheias de gargalos, sobreposição de tarefas, decisões manuais e gestão baseada em intuição. Tem muita gente empolgada com copilotos enquanto os dados do escritório ainda estão espalhados em planilhas, e-mails e sistemas que não se conversam. É como querer instalar “visão computacional” em um ambiente que ainda não aprendeu a enxergar a si mesmo.
A verdade é que a maioria ainda está usando IA para automatizar tarefas antigas, não para criar possibilidades novas. Continuam operando sob a lógica do “faça igual, só que mais rápido”. Mas IA não é sobre velocidade. É sobre mudar a forma como pensamos, decidimos e entregamos valor. E isso exige mais do que tecnologia. Exige cultura, método e arquitetura organizacional. Sem isso, o máximo que a IA fará é acelerar a entrega de algo que já está ultrapassado.
Outro dia, em uma conversa com um colega, ele comentou que a IA o ajudou a terminar em 40 minutos um trabalho que normalmente levaria quatro horas. Legal. Mas o que ninguém perguntou é se aquele trabalho ainda fazia sentido existir. É nesse tipo de lacuna que mora o maior desperdício de potencial. Estamos otimizando o que deveria ser eliminado. Automatizando o que deveria ser redesenhado. Fazendo certo o que já está obsoleto.
Esse é o verdadeiro “ponto cego” da adoção tecnológica. Seguimos aplicando IA com mentalidade analógica. Esperamos que ela nos diga o que já sabemos, mas com mais eficiência. Queremos que ela confirme nossas teses, não que nos confronte com hipóteses melhores. E aí, quando a IA entrega uma sugestão criativa, diferente, provocadora, o instinto é rejeitar, como se estivesse errada só porque desafia o nosso repertório.
Já presenciei isso de perto. Em um trabalho envolvendo uma operação societária complexa, foi usado um agente de IA para sugerir riscos e alternativas. Em uma das saídas, ele apontou uma possibilidade que ninguém havia levantado. Silêncio na sala. Desconforto. A primeira reação foi duvidar. A segunda foi justificar por que aquela hipótese era “teoricamente válida, mas improvável”. A terceira, e mais valiosa, veio de um dos sócios. “Por que nenhum de nós pensou nisso antes?”. Foi aí que a sala mudou. Não foi sobre a IA acertar. Foi sobre ela expandir o campo de visão do time.
Já presenciei muitas salas onde o simples ato de discordar gerava desconforto. Advogados, em geral, foram treinados para defender com convicção, não para escutar o que desafia seu ponto de vista. E quando essa contestação vem de uma IA, o efeito é ainda mais sensível. Não é sobre funcionalidade. É sobre identidade. A IA, nesse contexto, não confronta apenas uma tese. Ela desafia o lugar simbólico de quem sempre teve a última palavra. E, por isso, ela é tão necessária quanto desconfortável.
Essa talvez seja a principal diferença entre quem vai escalar com IA e quem vai continuar preso em pilotos que nunca evoluem. A disposição de ser desafiado por ela. Porque a IA só se torna estratégica quando nos obriga a pensar melhor, não quando apenas entrega mais rápido.
Uma coisa é certa. Você não precisa de IA se não tem clareza de onde quer chegar. Ferramenta nenhuma resolve ausência de visão. O que vejo hoje são escritórios tentando digitalizar um modelo mental que já não funciona. Querem parecer inovadores sem abrir mão da estrutura decisória que paralisa qualquer movimento real. Adotam IA como quem adota um mascote. Colocam na vitrine, dão um nome, mostram para os clientes. Mas não integram na rotina, não treinam o time para interagir com ela, não revisam processos, não aceitam ser desconstruídos.
Enquanto isso, o cliente muda. A complexidade dos negócios muda. O ritmo das disputas judiciais muda. E a advocacia ainda está discutindo se deve ou não usar IA para revisar contratos. A questão já não é mais se vai usar. É como vai usar para fazer o que nunca foi feito. E isso começa onde poucos estão olhando. Nos fundamentos.
Não adianta investir em IA se você não sabe onde estão seus próprios dados. Não adianta ter copiloto jurídico se a governança ainda depende de decisões políticas e não de critérios objetivos. Não adianta falar em prompt engineering se os sócios ainda tratam inovação como centro de custo. E, principalmente, não adianta colocar IA para acelerar um jurídico que ainda não aprendeu a desapegar de tudo que o trouxe até aqui.
A advocacia que prospera até 2030 será aquela que conseguir integrar IA como força criativa autônoma, não como atalho produtivo. E isso só será possível com estratégia de verdade. Com redesenho de processos. Revisão de mentalidade. Reestruturação dos núcleos operacionais. E um novo pacto de liderança.
Você pode adotar IA como quem compra um software. Ou pode incorporá-la como quem projeta um novo modelo de negócio. A diferença entre os dois caminhos é simples. O primeiro te mantém no jogo por mais um tempo. O segundo te coloca no centro dele.
Olhando para 2026, o cenário está evidente. E aqui vai um spoiler. Os escritórios que seguirem tratando IA como projeto paralelo vão se deparar com clientes que já usam agentes autônomos para auditar pareceres, monitorar jurisprudência em tempo real e comparar precificação entre firmas. Alguns departamentos jurídicos já estão integrando esses agentes diretamente às suas plataformas internas, dispensando parte da demanda tradicional de consultoria. A assimetria entre o que é entregue e o que é esperado não será sutil. E não haverá espaço para justificativa institucional. Só haverá resultado ou ausência dele.
Para quem está começando ou se sentindo perdido no meio de tanto ruído, a pergunta mais inteligente não é “qual IA eu compro?”. A pergunta certa é “o que estou tentando construir que a IA pode amplificar?”. Porque se você não souber responder, nenhum modelo de linguagem vai responder por você.
Talvez a IA não traga a resposta certa. Mas ela certamente vai deixar claro quem ainda está fazendo as perguntas erradas.