A importância do comprometimento dos escritórios de advocacia no combate à cultura do assédio

Por Luanda Pires, Fernanda Perregil e Lucca Pires

“Pequenos atos perversos são tão corriqueiros que parecem normais, começam com uma simples falta de respeito, uma mentira ou uma manipulação.”[1]

Não há como falar em inclusão da diversidade nos escritórios de advocacia, ou em qualquer organização, sem que haja atenção voltada à saúde interna do ambiente de trabalho. Portanto, o combate à prática de assédio, tanto moral quanto sexual, é prática essencial em qualquer organização.

O assédio moral é dividido e classificado de acordo com a sua abrangência: vertical descendente, vertical ascendente, horizontal e organizacional. Sendo descrito como “toda e qualquer conduta abusiva, manifestando-se sobretudo por comportamentos, palavras, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho” [2].

Esta espécie de assédio ocorre através de práticas como instruções imprecisas para a execução do trabalho, sobrecarga de tarefas, cobranças de metas e vigilância excessivas, isolamento da pessoa colaboradora, até restrições quanto ao uso do banheiro, por exemplo. Ou seja, o assédio moral é caracterizado por condutas que excedem os limites da função, seja por ação ou omissão e que tenham por objetivo atingir a autoestima, a estabilidade emocional, a autodeterminação e a evolução da pessoa dentro do ambiente de trabalho. Por estas razões, vítimas de assédio moral ficam com suas autoestimas completamente abaladas, não se sentem capazes de realizar seus trabalhos, ficam confusas frente às exigências do dia a dia, desatentas, acuadas, suscetíveis a erros, sem conseguirem atingir seus potenciais máximos.

Um conceito importante de assédio moral está presente na Resolução 351, do CNJ, que apesar de instituir no âmbito do Poder Judiciário a Política de Prevenção e Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação, pode ser utilizado por analogia para a iniciativa privada, conforme o texto do artigo 2º:

Art. 2º Para os fins desta Resolução considera-se:

 I – Assédio moral: processo contínuo e reiterado de condutas abusivas que, independentemente de intencionalidade, atente contra a integridade, identidade e dignidade humana do trabalhador, por meio da degradação das relações socioprofissionais e do ambiente de trabalho, exigência de cumprimento de tarefas desnecessárias ou exorbitantes, discriminação, humilhação, constrangimento, isolamento, exclusão social, difamação ou abalo psicológico;

II – Assédio moral organizacional: processo contínuo de condutas abusivas amparado por estratégias organizacionais e/ou métodos gerenciais que visem a obter engajamento intensivo dos funcionários ou excluir aqueles que a instituição não deseja manter em seus quadros, por meio do desrespeito aos seus direitos fundamentais;

No panorama internacional, a Convenção nº 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhece a necessidade de eliminação da violência e do assédio no mundo do trabalho. Entendendo, inclusive, que um acontecimento único já é suficiente para caracterização do assédio moral. Não mais necessitando de ações repetitivas para tanto.

Neste sentido, os grupos historicamente minorizados sofrem essas violências morais de forma sobreposta e somatizada, devido a fatores específicos e adicionais aos estressores cotidianos. A maioria destas pessoas, que não performam os padrões cisheteronormativos impostos pela cultura eurocêntrica, precisam se “adequar” às exigências destes padrões hegemônicos, que envolvem vestimentas e vários dos estereótipos sociais construídos em torno do perfil de um profissional “bem-sucedido” para serem inseridas no mercado de trabalho.

No que tange a questão étnico-racial, comentários e comparações sobre a aparência e características do corpo não-branco são muito comuns. Falas como “tomei sol e fiquei da sua cor” ou “deixe-me tocar no seu cabelo […] sempre achei que fosse duro, mas é tão macio” são recorrentes. Comentários como esses, nitidamente racistas, quando proferidos em seu ambiente de trabalho são estressores para a pessoa a quem se dirige.

Alguns estudos também mostram que as pessoas LGBTQIAP+[3] e negras[4] tem um maior risco de cometer o suicídio, como revelam a pesquisa realizada na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos e os dados do Ministério da Saúde brasileiro. Estas pesquisas concluíram que os estudantes LGBTQIAP+ são 5 vezes mais suscetíveis a tentar suicídio quando comparados aos heterossexuais e jovens negros 45% mais propensos. Outro estudo realizado pela entidade arco-íris Gay Center, com 4.000 adolescentes italianos, revelou que mais de mil deles (por volta de um terço) já pensou em suicídio.

Já o assédio sexual, que pode acontecer por chantagem ou intimidação, se manifesta pela conduta de natureza sexual, seja fisicamente, por palavras, gestos, propostas ou imposições à pessoas contra sua vontade, que causam constrangimento e violam a sua liberdade sexual. Desrespeitando direitos como a liberdade, a intimidade, a vida privada, a honra, a igualdade de tratamento, o valor social do trabalho, o direito ao meio ambiente de trabalho sadio e seguro, que são direitos fundamentais.

Esta prática tem como objetivo a exclusão da vítima, demonstrando nas suas entrelinhas, a partir do raciocínio da divisão sexual do trabalho, que a mulher ou aquela pessoa que não performa um padrão cisheteronormativo não é bem-vinda nesses ambientes. E, por óbvio, essa violência também reverbera de forma direta na saúde da vítima, na qualidade do seu trabalho e faz com que, em dado momento, muitas sejam afastadas desses ambientes.

De acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho, mais de 52% das mulheres economicamente ativas já foram vítimas de assédio sexual no trabalho. No mesmo sentido, levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa do Risco Comportamental, mais da metade dos profissionais brasileiros prática ou tolera assédio em seu ambiente de trabalho. Este levantamento, que tinha como objetivo a compreensão e a visão das pessoas frente a hipóteses de conflitos dentro do ambiente organizacional, entrevistou quase 2.500 pessoas de empresas privadas no Brasil, ocupantes de cargos atrelados à vulnerabilidade de atividades como informações confidenciais, bens, dinheiro e negociações. Em relação ao assédio moral, os resultados indicaram que:

  • 41% disse que se omitiria, mesmo que presenciasse colegas sendo assediados moralmente;
  • 18% disse tolerar o assédio moral como algo normal e aceitável, muitas vezes acreditando ser o único caminho para o alcance de resultados;
  • 37% disse rejeitar a prática dentro dos ambientes de trabalho.

Em relação ao assédio sexual:

 

  • 43% disse não aceitar o assédio sexual em seu ambiente de trabalho;
  • 37% disse possuir flexibilidade ética quanto ao tema pois, apesar de entender que assédio sexual não é adequado e se trata de um crime, tendem a cair na cultura da indiferença ao não se importar que colegas sofram essas abordagens;
  • 16% afirmou que buscaria deliberadamente se aproveitar da posição hierárquica para tentar subjugar subordinados para favores sexuais. Ou seja, 16% assume praticar assédio sexual.

Por tudo isso, o mercado jurídico também precisa se aprofundar dentro destas temáticas, realizando um trabalho focado na promoção de um ambiente saudável, que deve ser objetivo de qualquer organização, independente do setor. Um sistema que coloca as pessoas apenas como capital financeiro, sem se preocupar com suas saúde e segurança, não é mais aceitável. É preciso que antigos padrões de liderança e alicerces, que mantém a cultura do assédio, sejam questionados. Contudo, o problema para essas organizações surge quando se acredita que mudanças comprometem a qualidade, a excelência ou a eficiência, mas este entendimento é parte do antigo formato de “chefia” que ainda luta pela manutenção do status quo.

Prova da importância deste reconhecimento foi o lançamento da Campanha “Advocacia sem assédio”, realizada pela OAB São Paulo durante o encontro anual da sua Comissão da Mulher Advogada, ocorrido no início deste mês. Durante o encontro, que contou com a presença, dentre outras, da Presidente da Seccional, Presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB Nacional; Presidente e Vice-Presidente da Comissão da Mulher Advogada da Seccional São Paulo; Coordenadora jurídica do MeToo Brasil e do Projeto Justiceiras; Dras. Patrícia Vanzolini, Cristiane Damasceno, Isabela Castro, Ana Carolina Lourenço e Luciana Terra, respectivamente, foi anunciado o canal para recebimento de denúncias de violência contra as mulheres advogadas, criado pela OAB São Paulo, em parceria com a organização Me Too Brasil e o Projeto Justiceiras.

Por fim, escritórios de advocacia estão inseridos no sistema que vem exigindo de todas as organizações a preocupação com riscos reputacionais e sociais. Assim, se para as empresas a mudança das antigas práticas, paradigmas e cotidianos é um caminho sem volta, para os escritórios de advocacia, como um stakeholder da cadeia de produção, esse também deve ser. Uma vez que o legado não é a “razão social” de uma corporação, mas a sua identidade corporativa que reflete naquilo que é deixado para toda sociedade como um valor agregado! Isso, muitas vezes, significa modificar-se e adequar-se ao novo, um mundo em que a cultura do assédio deve ser combatida e eliminada.

Luanda Pires

Fernanda Perregil
Lucca Pires – Internacionalista com estudos focados em questões étnico-raciais e LGBTQIAP+


[1] HIRIGOYEN, Marie-France, Assédio Moral – A violência perversa no cotidiano, ano 2021,

[2] HIRIGOYEN, Marie-France, Assédio Moral – A violência perversa no cotidiano, ano 2021,

[3] https://www.crp15.org.br/artigos/pesquisa-revela-o-risco-de-suicidio-na-comunidade-lgbt/

[4] https://almapreta.com/sessao/cotidiano/setembro-amarelo-racismo-e-exclusao-social-explicam-alto-indice-de-suicidio-entre-negros-no-pais

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