A reificação do corpo da mulher como ferramenta de dominação e poder

“Ser estuprada e não poder abortar.
Ser estuprada, ter a criança e ser condenada.
Ter a criança e durante o parto ser estuprada.”

@clorexiduda[1]

Esse artigo não é sobre direito ao aborto, entrega segura de um bebê à adoção, crimes sexuais ou divulgação ilegal de vídeo de cena de estupro de vulnerável. A partir das séries de violências contra a mulher noticiadas no último mês, cometidas por aqueles que têm o dever de cuidar – Estado, equipe médica, sociedade – e tomando como ponto de partida a construção do “ser mulher”, sempre em primeira pessoa, trarei provocações para que pensemos como tudo isto está intimamente entrelaçado com controle, manutenção de poder e propriedade destes corpos.

É necessário pensar em como o capitalismo está relacionado com a ocorrência de um feminicídio a cada sete horas no Brasil; como a divisão binária do trabalho está profundamente relacionada com a vida das 630 mulheres que, diariamente,  procuraram uma autoridade policial em 2020, para denunciar episódios de violência doméstica; como a reificação do corpo da mulher fez com que durante o isolamento social provocado pela pandemia houvesse aumento de mais de 6% na taxa de homicídios de mulheres dentro de casa por seus companheiros.[2]

Partirei também da definição filosófica de “reificação” trazida por Geord Lukács, que alarga o ensinado pelo Marxismo e define reificação como um:

[…] processo histórico inerente às sociedades capitalistas, caracterizado por uma transformação experimentada pela atividade produtiva, pelas relações sociais e pela própria subjetividade humana, sujeitadas e identificadas cada vez mais ao caráter inanimado, quantitativo e automático dos objetos ou mercadorias circulantes no mercado. (HONNET, 2018)

Bem como do definido pelo dicionário de Oxford:

“qualquer processo em que uma realidade social ou subjetiva de natureza dinâmica e criativa passa a apresentar determinadas características de um objeto inorgânico, perdendo sua autonomia e autoconsciência.”

Para que nós possamos analisar de forma pragmática e humanizada como essa sociedade de fato coloca as mulheres em condições inferiores, partirei do necessário pressuposto de que nenhuma análise neste sentido pode ter como objetivo a verificação apenas de aspectos culturais que permeiam a construção do que temos hoje como definição de gênero e sexualidade. Para que pensemos na construção desses corpos, sujeitos de não-direitos, é necessário partir de seu princípio fundante: as relações de poder no decorrer da história.

É impossível pensar a respeito da compulsória subordinação a que as mulheres são colocadas em todos os ambientes sociais, ainda hoje nas sociedades contemporâneas, sem que pensemos em como a heterossexualização e o falocentrismo foram, e são, determinantes para a permanência da caça às mulheres.

A inferiorização do corpo da mulher começa a partir do desenvolvimento da ideia falocentrada que toma como ponto de partida a ideia de uma forjada inferioridade anatômica, em que mulheres passaram a ser vistas como “homens incompletos” por não terem os órgãos sexuais como o deles.

A partir disso, podemos inclusive entender porque nós somos o país que mais mata mulheres travestis e transexuais no mundo, pelo 13º ano consecutivo. Sendo que somos o país líder no consumo de conteúdo pornográfico com essas mulheres. É essa heterossexualização e o falocentrismo, unidos às relações de poder que nos levam aos péssimos índices e condições a que corpos que fogem do padrão masculino – e heterocisnormativo -, são submetidos no decorrer da história.

É através da negação da existência e perpetuação desses conceitos que práticas como a cultura do assédio – que ao contrário do imaginado pelo senso comum, não está ligada apenas à hierarquia mas primordialmente à dignidade da pessoa, possuindo como finalidade sua objetificação – foram naturalizadas em nossa sociedade.

Em razão desta construção que ainda hoje, cotidianamente, a sociedade diz a todas as mulheres e todas aquelas pessoas que não performam os padrões socialmente construídos como masculinos, que espaços de trabalhos remunerados, valorizados, que fogem do papel reprodutivo e de cuidado, não lhes pertencem.

Por isso precisamos pensar para além do que está posto nas relações modernas, como de forma meticulosa, partindo da hipersexualização e comercialização dos corpos femininos, mulheres ainda são punidas, moral e fisicamente, apenas por existirem. Desde que o mundo é mundo. E como isso sempre interferiu e interfere no nosso cotidiano.

É necessário que levemos em conta a reificação do corpo da mulher, nos reflexos e consequências dessa construção, dado que são fatores que nos trazem ao cenário de violências a que somos submetidas, invariavelmente.

Em realidade, nunca houve uma quebra de paradigma. Muito pelo contrário, como em todas as violências que ainda são cometidas no mundo contemporâneo, o que temos é o desenvolvimento de formas altamente aprimoradas para continuar perpetrando tais violências.

2022. Caça às bruxas. Idade moderna. Idade média. Ainda que tenhamos avançado – e não estou aqui dizendo que não houve avanço em relação a construção de direitos das mulheres -, com os índices de violência contra as mulheres que apresentamos hoje, podemos tranquilamente falar do passado, utilizando o “presente” como tempo verbal.

Para quem trabalha com direito antidiscriminatório, gênero, diversidade, inclusão, relações governamentais e litigância estratégica como eu, perder a ideia de concretude do avanço seria desistir. Realmente acredito que, em relação à construção de direitos, estamos avançando. Mas socialmente, analisando o presente a partir do passado, tudo me leva a crer que vivemos na nova idade média.

A queridíssima Silva Chackian no seu livro “A construção dos Direitos das Mulheres” (2020), demonstra muito bem a evolução em torno da construção de novos valores e as demandas por instrumento de proteção direcionados às mulheres. E ratifica o fato de que sim, o Direito foi forçado a evoluir no que tange a positivação destes direitos. Isto quer dizer que possuímos um conjunto de leis robusto e equipamentos criados de forma muito bem estruturada.

Por isso, eu não falo para causar alvoroço. Ao contrário, trata-se de um alerta. Estamos em 2022 e vivemos no país onde mulheres são assassinadas com idade média de 35 anos. A mesma expectativa de vida da humanidade na idade média[3]. O dado é o mesmo entre mulheres transexuais, travestis e cisgêneras.

Mulheres travestis e transexuais são assassinadas hoje no país com esta média de idade. A cada sete horas uma mulher cisgênera é morta por feminicídio. 74,7% dessas mulheres assassinadas têm entre 18 e 44 anos. Ou seja, quase 75% das mulheres cisgêneras mortas em razão de misoginia, também tem idade média de 35 anos. A mesma idade em que mulheres transexuais são assassinadas e muito próxima à expectativa de vida da população da idade média. Todavia, para uma sociedade feminicida, a idade pouco importa.

Silvia Frederich, no livro Calibã e a Bruxa (2017), traça um paralelo com a caça às bruxas ocorrida no Novo Mundo. Tomando como ponto de partida estudos do historiador italiano Luciano Parinetto, ela demonstra que foi a partir da experiência nas Américas – encontrando a confirmação de suas teses sobre adoração ao diabo, crendo inclusive na existência de populações inteiras de bruxas, por causa dos indígenas não cristãos – que os Europeus começaram suas campanhas de cristianização ao redor do mundo como estratégia política de dominação.

Dentre todo o levantado por Parinetto, Silvia ressalta a importância desses estudos correlacionados no sentido de dissipar o característico eurocentrismo que está intimamente ligado à caça às bruxas, ampliando nossa consciência sobre, segundo ela, o caráter global do desenvolvimento capitalista. Demonstrando, inclusive, que naquela época já existia na Europa uma estratificação social na qual uma classe dominante já geria a política e a ideologia de uma classe dominada. Elaborando, desde já, seus modelos de dominação, de acordo com o que adquiria em outras partes do mundo.

Essa caça às bruxas continuou a ser desenvolvida e aplicada até a última metade do século XVII, quando o extermínio de populações inteiras e a consequente crescente na segurança política e econômica do poder colonial fizeram com que a perseguição não fosse mais necessária. Assim, tentativas de domínio e influência nas crenças religiosas e morais da população, a partir do século XVIII, foram encerradas porque já não apresentava qualquer perigo para o domínio colonial.

Deixando exposto que a estrutura de desprezo e repulsa pelo feminino é antiga e, muito embora o reconhecimento público das brutalidades cometidas contra as mulheres seja elogiável, nós precisamos incorporá-lo às discussões do presente.

O que antes era chamado de caça às bruxas, hoje nós chamamos de feminicídio. E se nós não trouxermos esse diálogo para o presente, as futuras gerações utilizarão outros termos, mas as violências contra as mulheres, estas perseguições misóginas, continuarão acontecendo.

Importante ressaltar que a maioria das vítimas de violência sexual e assédio no Brasil é do sexo feminino e negra. Outro ponto a ser entendido é que em 2019, 10 anos após a mudança na tipificação do crime de estupro no Código Penal brasileiro, momento em que o atentado violento ao pudor passou a ser enquadrado aí, nós tivemos no Brasil os maiores índices de violência sexual cometida contra mulheres.

E sim, as mulheres negras são as mais assassinadas e violentadas. Há períodos em que os índices demonstram diferenças de quase 80% no número de assassinatos, quando comparados a partir de fundamentos raciais.

Segundo relatório da ONU, que fez um estudo sobre os feminicídios e ratifica os dados trazidos pelo Fórum de Segurança Pública, enquanto os homens são as principais vítimas quando falamos de homicídio em âmbito geral (latrocínio, por exemplo). As mulheres são vitimadas em razão de discriminações e desigualdades baseadas no gênero. E isso fica muito exposto quando os dados revelam que 81,5% das mulheres são mortas por seus companheiros ou ex-companheiros. Outras, 8.3%, por outros parentes. Sendo que dessas mulheres, 61,8% é negra, importante ressaltar mais uma vez.

Outro ponto relevante em relação à ojeriza criada em torno do feminino, é que os dados revelam que o feminicídio é precedido por uma série de outras violências cometidas contra a mulher no decorrer da vida: as violências psicológicas, físicas, sexuais, patrimoniais e todas aquelas que compõem o ciclo da violência contra a mulher e que nos fazem chegar à mais letal de todas, que é o feminicídio.

A reificação dos nossos corpos é base para a manutenção também da cultura do assédio, que é a realidade para 97% das mulheres brasileiras que vivem em áreas urbanas. Em 2019, os institutos Patrícia Galvão e Locomotiva divulgaram um estudo apontando que 97% das mulheres afirmaram que já foram vítimas de assédio em meios de transporte e 71% das pessoas conheciam alguma mulher que já havia sofrido assédio em público.

Segundo pesquisa divulgada pela Organização Internacional de Combate à Pobreza Action Aid, mais de 50% das mulheres entrevistadas disseram ter sido assediadas nas ruas e mais de 20%, no ambiente de trabalho.

De acordo com a pesquisa “Violência Doméstica e familiar contra magistradas e servidoras do sistema de justiça”, recém publicada pela Universidade de São Paulo -USP e Fundação Getúlio Vargas – FGV, 40% das servidoras e magistradas brasileiras já sofreram violência doméstica. (VILLAROEL; BUZOLIN; ALMEIDA; SEVERI, 2022)

As Doutoras em Direito, Bruna Azevedo e a Samia Cirino (2022) fazem essa análise de forma muito interessante. Em artigo publicado, elas trazem inclusive as teorias da Judith Butler que diz que essa construção parte da manutenção de normas que expõem as mulheres, mascarando as relações de poder, a opressão relacionada a heterossexualização e o falocentrismo, colocando as relações de gênero como ponto de partida da diferenciação sexual.

Se aplicarmos estes conceitos desconstruídos aos marcos regulatórios que envolvem a questão das mulheridades, desconsiderando os fatores fundantes que dão origem às assimetrias nas relações de gênero e nos baseando em critérios biológicos do papel da mulher nas sociedades, nós teremos um Direito, uma legislação que acaba por reificar a violência de gênero e, portanto, de difícil aplicabilidade prática.

Caso permaneçamos isolando os reais fatores que sujeitam as mulheres ainda nos dias de hoje à essas penalidades físicas e morais, nós continuaremos “tapar o sol com a peneira” e institucionalizar a reificação das violências baseadas no gênero. Mantendo todo o panorama de violência contra a mulher que, repito, não mudou, torna-se cada vez mais elaborado, reificando por via direta e não adversa, ressalto, o próprio Direito e o sistema legal.

Referências

CIRINO, Samia Moda; DE CASTRO, Bruna Azevedo. O CORPO-OBJETO DA MULHER: REIFICAÇÃO DA LÓGICA OPRESSORA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO NO CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL. Argumenta Journal Law, Jacarezinho – PR, n. 30, p. 405-433, jun. 2019. ISSN 2317-3882. Disponível em: <http://seer.uenp.edu.br/index.php/argumenta/article/view/1628>. Acesso em: 10 jul. 2022. doi:http://dx.doi.org/10.35356/argumenta.v0i30.1628.

CHAKIAN, Silvia. A construção dos Direitos das Mulheres. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. 388 p.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

HONNET, Axel. Reificação: Um estudo de teoria do reconhecimento. São Paulo: Editora Unesp, 2018. 223 p.

VILLAROEL, Camila Maria de Lima; BUZOLIN, Lívia Gonçalves; ALMEIDA, Gabriela Perissinotto de; SEVERI, Fabiana Cristina; RAMOS, Luciana de Oliveira. Violência doméstica e familiar contra magistradas e servidoras do sistema de justiça. São Paulo: FGV, 2022.


[1] Alcunha da autora da frase na rede social Twitter

[2] Todos, dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

[3] Estimada pela metade da terceira década de vida

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