Mudar do ambiente de um escritório de advocacia para o departamento jurídico de uma empresa é uma experiência que muitos advogados buscam — seja por curiosidade, por um novo desafio, por equilíbrio entre vida pessoal e profissional ou pela vontade de participar mais de perto das decisões do negócio. Mas o que pouca gente fala (e que quase ninguém ensina na faculdade) é que essa transição é muito mais profunda do que parece. Ela não é apenas uma troca de endereço profissional — é uma mudança de mentalidade, postura e forma de enxergar o papel do advogado.
Se você já fez essa mudança, provavelmente sabe do que estou falando. Se ainda está pensando em fazer, vale a pena se preparar: o jogo muda. E muda muito.
No escritório, a lógica gira em torno do Direito técnico. O advogado é chamado para escrever pareceres robustos, elaborar petições bem fundamentadas, mergulhar na jurisprudência e apresentar uma análise profunda da legislação. A excelência está na precisão jurídica. Já no departamento jurídico, a conversa é outra: além de ser um bom jurista, você precisa ser estrategista, pragmático e, acima de tudo, conectado com o negócio.
O primeiro choque de realidade costuma vir com uma pergunta aparentemente simples — mas que carrega muita expectativa por trás: “E aí, o que a gente faz?”. Essa pergunta, feita por alguém da área comercial, de operações, de marketing ou da alta gestão, não está pedindo um parecer de 10 páginas, com doutrina e jurisprudência. Está pedindo uma solução prática, aplicável, clara e ágil. Está pedindo um advogado que compreenda o contexto, o impacto, o risco, e que consiga traduzir tudo isso em uma orientação realista — que ajude a empresa a tomar decisões.
E é aí que muitos bons advogados, altamente técnicos, se sentem perdidos. Porque a empresa não quer (e nem tem tempo para) análises complexas que não levem a lugar nenhum. Ela quer respostas que façam sentido dentro da lógica do negócio. E, para isso, não basta conhecer bem as leis — é preciso entender o mercado, os produtos, os clientes, os desafios da operação e o momento da companhia. O jurídico passa a ser uma peça do quebra-cabeça empresarial. E, como tal, precisa se encaixar para gerar valor.
Outro ponto que nem sempre é dito com clareza é o quanto a cultura corporativa é diferente da cultura dos escritórios. No mundo empresarial, existe uma hierarquia clara, processos definidos, prazos curtos e uma cobrança forte por resultados concretos. A comunicação entre áreas é direta, sem rodeios. O advogado que se comunica apenas com linguagem jurídica pode ser visto como alguém que “complica” em vez de “resolver”. E isso pode isolar o jurídico — o que é tudo que não queremos.
Além disso, no escritório você é, na maioria das vezes, o centro da questão jurídica. No jurídico interno, você faz parte de um time mais amplo, multidisciplinar. Você precisa saber ouvir, dialogar, flexibilizar e — muitas vezes — abrir mão de uma solução ideal, em nome de uma solução viável. Não é abrir mão da legalidade ou da ética, é fazer a ponte entre o certo e o possível, com responsabilidade e sensibilidade.
E sabe o que mais muda? O sentimento de pertencimento. No escritório, o cliente é externo. No jurídico interno, o cliente está dentro de casa: é o colega de outra área, o gestor do projeto, o executivo que quer fechar um contrato. A relação é contínua. Você não entrega um parecer e encerra o caso — você acompanha, participa, negocia, ajusta, defende, reavalia. Você vira parte da história daquela decisão.
Claro, nem tudo são flores. No início, é comum sentir insegurança, especialmente ao se deparar com temas que não são do universo jurídico: indicadores, KPIs, planejamento estratégico, orçamento, metas comerciais. Mas esse desconforto é também um convite ao crescimento. É uma chance real de sair da bolha do “juridiquês” e se tornar um profissional mais completo, mais conectado, mais influente dentro da organização.
A verdade é que o mundo empresarial precisa — e valoriza — advogados que saibam dialogar com o negócio. Que estejam prontos para ouvir, para construir junto, para dizer “não” quando necessário, mas também para mostrar caminhos. E esse tipo de advogado não nasce pronto. Ele se forma na prática, na escuta, na humildade de aprender com outras áreas, e no esforço diário de se reinventar.