Por Luanda Pires e Mikkel Mergener
O entrave (transfóbico) em torno do direito de pessoas transgênero e não binárias (ou NBs) utilizarem banheiros condizentes com sua identificação de gênero não é novo. Tanto é que o Recurso Extraordinário (RE) 845.779/SC que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2014, discute a configuração, ou não, de conduta ofensiva à dignidade da pessoa humana e aos direitos da personalidade na ocorrência de impedimento de acesso. O que, em caso positivo, ensejaria indenização a título de dano moral.
Com dois votos favoráveis no sentido do reconhecimento da ofensa aos direitos constitucionais dessas pessoas, quando impedidas ou expulsas dos banheiros condizentes com seus gêneros, o julgamento do caso, que tem repercussão geral, pode ser retomado. Tudo, graças às recentes mudanças no Regimento Interno do Tribunal que estabeleceu prazo de 90 (noventa) dias para a devolução dos pedidos de vistas dos Ministros. Assim, de acordo com o novo regramento, passado esse período, os processos serão automaticamente liberados para análise de todos os integrantes da Corte – na contramão do que acontecia anteriormente, quando não havia liberação automática para julgamento dos casos pelo plenário, possibilitando pedidos de vistas, por tempo indeterminado.
É necessário ressaltar de antemão que, muito embora não exista legislação específica neste sentido no país e o entendimento em torno da utilização dos banheiros por pessoas trans e não binárias não tenha sido consolidado pelo Supremo Tribunal Federal, o respeito à identidade de gênero é regrado (reconhecido pelo STF na ADI 4275). Assim, as normas que garantem o respeito à essas identidades e ao nome social deveriam ser suficientes para assegurar o acesso aos banheiros, por ser um direito derivado.
Conforme já trazido nesta coluna, o envolvimento das pessoas para as quais direitos específicos discutidos são direcionados é primordial. Assim, para o presente artigo, convidei Mikkel Mergener, pessoa trans não binária e consultora de direitos humanos, que contribuiu na redação deste texto, demonstrando a relação entre banheiros inclusivos e dignidade.
Em rápida análise, o tema pode parecer estranho para estar entre as pautas dos meios jurídico e corporativo: por que focar em banheiros? Mas, só se pergunta isto quem não tem dificuldade para usá-los. A sociedade já lida bem com a existência de banheiros para pessoas com deficiência e banheiros-família, mas os banheiros sem gênero tendem a dividir grupos (ainda que todos os sanitários domésticos e alguns públicos, aqueles instalados em eventos por exemplo, sejam sem gênero).
De um lado, existem as pessoas que trazem para a discussão questões biomédicas, jurídicas ou ideológicas para justificar a proibição da criação de banheiros neutros ou da naturalização do uso de banheiros femininos e masculinos por pessoas trans. Do outro, existem pessoas trans e não binárias que querem apenas que suas dignidades sejam respeitadas com a garantia, assim como as pessoas cisgênero (cis) têm, de satisfazerem suas necessidades básicas em ambientes públicos. Escritórios, eventos, prédios, condomínios, shoppings, aeroportos… Todos estes ambientes costumam ter sanitários, pois trata-se de necessidade básica, inerentemente humana. Todavia, por motivos puramente discriminatórios, a regra para essas pessoas é o medo da violência.
Drauzio Varella, médico reconhecido internacionalmente, admitindo ser comum que pessoas trans não utilizem banheiros públicos para evitar situações desconfortáveis ou perigosas, mesmo passando longos períodos longe de casa, manifestou-se sobre o assunto, pontuando que a questão dos banheiros “vai além dos direitos civis, porque afeta a saúde. Por interferir com funções fisiológicas essenciais, dificultar o acesso a eles aumenta o risco de infecções urinárias, renais, obstipação crônica, hemorroidas e impede a hidratação adequada de quem evita beber água para conter a necessidade de urinar.”
Nesse ponto, existe uma diferenciação: algumas pessoas trans e NBs aparentam ser pessoas cis pela forma como se vestem e se comportam socialmente. Essas pessoas, num geral, costumam ter menos ansiedade para ir ao banheiro, ainda que fiquem limitadas à utilização destes espaços de acordo com o gênero que aparentam ter. Mas pessoas trans e NBs que possuem traços físicos ou comportamentos andróginos, que misturam noções de feminilidade e masculinidade, são rapidamente percebidas como não cis e, não raro, são hostilizadas ao precisarem utilizar banheiros públicos.
Por esta razão, pessoas trans e/ou NB, precisam ter posturas estratégicas complexas para satisfazerem essa necessidade básica, que as pessoas cis têm garantida. Esta ansiedade generalizada e as possíveis agressões decorrentes da tentativa do uso dos sanitários de acordo com a identidade de gênero, são violações à dignidade de seres humanos trans e NBs. O próprio caso de repercussão geral anteriormente citado, que está em julgamento no STF, decorreu de um fato opressor. Na demanda, a autora, transexual, foi impedida e abordada de maneira vexatória por funcionários de um shopping, ao tentar utilizar o banheiro feminino do estabelecimento. Infelizmente, a este caso, somam-se vários outros que ocorreram ao redor do país.
Dentre os direitos basilares do Estado Brasileiro e os princípios fundamentais garantidos pela Constituição Federal, estão: a dignidade humana, a igualdade e a não discriminação. Além disso, a nível internacional, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), também recomenda que seja permitido o uso de banheiros conforme a identidade de gênero, como trazido no “Informe sobre Personas Trans y de Género Diverso y sus derechos económicos, sociales, culturales y ambientales”.
Neste sentido, o Ministério Público do Trabalho (MPT) garantiu o acesso a banheiros e vestiários de acordo a identidade de gênero em todas as unidades do órgão no país, por meio da Portaria 1.036/2015. Mais, a Resolução 12/2015 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República instituiu de modo a permitir o uso de banheiros de acordo com o gênero em sistemas e instituições de ensino. Conforme se vê, ainda que internos e direcionados, multiplicam-se os regramentos que reconhecem a necessidade do respeito às identidades trans e não binárias quando da utilização destes espaços. Motivo pelo qual, inclusive, crescem as notícias de pessoas trans e NBs vencendo processos judiciais indenizatórios, em razão de situações de impedimento do uso do banheiro.
Todavia, as pessoas trans e NBs não estarão sendo tratadas com dignidade enquanto precisarem ajuizar processos para terem seus direitos declarados e reparados quando tolhidos. Existem diversas maneiras para a criação de banheiros inclusivos, uma solução seria a criação de um terceiro banheiro, “universal” e acessível, sem designação de gênero. O importante é ter em mente que a dignidade de pessoas trans e NBs não deve ser vista como menos merecedora de atenção. No passado, quando as mulheres passaram a ocupar os ambientes de trabalho, a sociedade precisou adaptar estes ambientes predominantemente masculinos para que passassem a existir banheiros femininos. Hoje, as pessoas trans e não binárias pedem o mesmo: que a sociedade abra espaço para que se sintam pertencentes nestes ambientes predominantemente cis e binários.
Mikkel Mergener é pessoa trans não binária, jurista e empreendedora em sua consultoria de direitos humanos, a Merg.