O dilema existencial imortalizado na peça Hamlet – “ser ou não ser, eis a questão” – pode ser trazido hoje para o universo da advocacia. O ponto de inflexão nos faz questionar o modelo então conhecido, tradicional, centralizado e personalista dos anos 2000, e a necessidade do escritório de advocacia se reinventar como verdadeira empresa de serviços jurídicos, regida por governança, sustentabilidade e inovação.
Assim como Hamlet, que se vê diante da escolha entre agir e transformar sua realidade ou permanecer paralisado pelo peso do passado, a advocacia se encontra frente a frente com a questão: ou se adapta ao novo mercado corporativo, ou corre o risco de desaparecer em meio à sua própria inércia.
O “primeiro ato” dessa peça se passou nos anos 2000, num cenário jurídico tomado pela tradição, com escritórios centrados em sócios fundadores, que acumulavam funções técnicas e administrativas. Os Departamentos Jurídicos, por sua vez, vistos como áreas de apoio, com atuação quase exclusiva em contencioso.
Essa estrutura dedicava pouca ou nenhuma atenção à governança, cultura organizacional ou métricas de desempenho, o uso de tecnologia ficava restrito a softwares processuais e bancos de jurisprudência e a sustentabilidade (ESG) se encontrava fora do horizonte de preocupações.
Nesse tempo a reputação individual sustentava negócios inteiros, embora, em seu âmago, trouxesse sinais de esgotamento.
Podemos cogitar que o “segundo ato” começou quando pressões externas impuseram à advocacia a necessidade de transformação. Clientes corporativos passaram a exigir previsibilidade, relatórios, KPIs e alinhamento estratégico. Com a globalização e a atuação de bancas internacionais, pudemos nos deparar com práticas mais sofisticadas de governança. A tecnologia acelerou fluxos de trabalho, reduziu (ou ao menos sugeriu) a automação de tarefas repetitivas e aproximou o direito de análises orientadas a dados. O mundo demandou propósito, diversidade e qualidade de vida e os advogados passaram a refletir e exigir uma transformação. Com as mudanças iniciadas, sustentabilidade e ESG tornaram-se critérios de seleção de parceiros jurídicos.
Foi nesse momento em que a advocacia se viu numa posição crucial e o dilema de Hamlet tornou-se imperativo: ser ou não ser? Ser moderna, empresarial e inovadora, ou não ser nada além de uma peça antiga, deslocada num palco que já mudou.
Chamo o nosso atual estágio de “terceiro ato” e afirmo que neste momento a advocacia já não pode ser apenas técnica. Ela é, para os clientes corporativos, avaliada como empresa e com isso espera-se que os escritórios contem necessariamente com governança, RH, controladoria e Legal Ops. Departamentos jurídicos precisam assumir protagonismo, apresentarem-se como áreas estratégicas, não apenas de suporte. Cultura organizacional e diversidade devem ser vistos como pilares de competitividade e ESG como passaporte de sobrevivência no mercado.
Certo é que a advocacia não pode ser uma dramaturgia empresarial, decisão não pode ser encenada e erudição jurídica não satisfaz os clientes, que buscam eficiência, transparência e responsabilidade social.
Vale dizer que especialmente nos EUA e Reino Unido, escritórios de advocacia, há décadas, operam como empresas, com CEOs e CFOs profissionais de fora do direito — realidade que começa a se impor também no Brasil.
O “último ato” ainda não foi escrito. O futuro exige um uso avançado de tecnologia; integração com a IA; governança e dados como norteadores de decisões; ESG como critério decisivo de competitividade; advogados multidisciplinares, aptos a dialogar com negócios, tecnologia e cultura.
Tal como Hamlet, a advocacia tem diante de si uma decisão inevitável: abraçar o novo ou sucumbir ao peso do passado. “Ser” significa reelaborar um modelo de negócio com todos os desafios e necessidades que o mercado impõe. “Não ser” equivale a ficar presa a um modelo ultrapassado, condenando-se à irrelevância. Para quem pretende permanecer no mercado não deve haver dúvida – SER é a única alternativa viável.

Clíssia Carvalho
É sócia fundadora e CEO do escritório Pena Carvalho Advogados, membro da Diretoria Jurídica da FIESP e cofundadora do coletivo Ser.A.Ceo.