Que a criatividade é um atributo humano, sendo inclusive objeto de registro enquanto propriedade intelectual não é necessariamente uma novidade. Desde épocas distantes, os humanos já se diferenciavam dos outros animais pela sua capacidade de apropriação e criação de itens comuns para o desenvolvimento de acessórios específicos. Com o passar do tempo, essas criações úteis e também artísticas ganharam forma, necessitando mais tarde da criação de mecanismos jurídicos correlatos para a sua proteção, o que se intensificou considerevalmente a partir dos séculos XVIII e XIX.
Contudo, atualmente os sistemas artificialmente inteligentes desafiam essa ideia de “humanidade” da criatividade e produção “intelectual”. Ao produzirem obras que, caso fossem produzidas por humanos, possivelmente preencheriam os requisitos para terem proteção de direitos autorais, o cenário torna-se mais amplo e complexo, sendo necessáro reconstruir ou reconceber os princípios que historicamente originaram esses direitos.
Apesar de o direito de propriedade intelectual ter origem de maneira estruturada a partir da concepção inglesa do Copyright Act de 1710 sobre a reprodução de obras literárias, Vanessa Ferro salienta que apenas em 1793 é possível vislumbrar, na lei autoral francesa, a possibilidade e a proteção efetiva ao direito de propriedade do autor sobre a sua criação fundamentado na propriedade intelectual que mais se aproxima das definições atuais.
Para tanto, ao comentar sobre as definições de produção intelectual e seus reflexos nas tecnologias atuais que têm a capacidade de criação semelhante ao que os critérios tradicionais de verificação e proteção de direitos de propriedade intelectual classificariam como humanos, Ana Ramalho afirma que o nível de intervenção humana e a autonomia sistêmica podem ser identificadas em uma espécie de escala, analisando-se o nível de contribuição humano para um determinado resultado. Essa classificação é importanto porque, segundo a autora, enquanto os softwares e obras criados por humanos são obras elegíveis para proteção por direitos autorais[1] [2], incluindo os algoritmos de inteligência, as obras criadas de forma autonôma por IA ainda são objeto desta proteção[3].
No âmbito internacional, a Convenção de Berna, da qual o Brasil é signatário, é o principal instrumento internacional para a proteção de obras literárias, artísticas e científicas. Embora não haja necessariamente a classificação de autoria, a Convenção parece indicar a condição humana como pressuposta, inclusivendo vinculando a sua proteção a determinado prazo após o término da vida do autor, vinculado portanto aos seus direitos de personalidade.
Ana Ramalho esclarece ainda que, nos Estados Unidos, o Copyright Act também não traz a definição de autoria. Todavia, entende que obras anônimas são aquelas em que não é possível identificar uma pessoa natural como o seu criador, sendo essa interpretação utilizada para concluir que, a princípio, também considera autor como pessoa física.
Já no Brasil, a Lei nº 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais), em seu art. 7º, considera autor como pessoa física, podendo também a pessoa jurídica ser considerada como tal em alguns casos previstos na legislação. Despontam três correntes doutrinas sobre a natureza jurídica dos direitos autorais: (i) direito de monopólio – privilégio de reprodução exlusiva como contrapartida aos benefícios trazidos pela invenção a sociedade (contrato táctio entre criador e sociedade); (ii) direito de propriedade – classifica os direitos autoriais enquanto propriedade dos seus autores seguindo a linha de direitos reais, salvo pelo carater incorpóreo do bem, mantendo a possibilida de agir sobre eles do seu proprietário; e (iii) direito de exclusividade – devido as características de não rivalidade e não exclusividade dos bens incorpóres é possível a utilização do bem por outras pessoas sem o seu esgotamento, permitindo sua livre reprodução, motivo pelo qual se falaria em exclusividade temporária e não propriedade[4].
Para Salomão e Somesom, a propriedade intelectual pode ser diferenciada em dois grandes grupos: (i) Direitos autorais e conexos – obras intelectuais e de artistas intérpretes ou executantes, produtores fonográficos e das empresas de radiodifusão; e (ii) Direitos de propriedade industrial – engloba marcas, patentes de invenção, modelos de utilidade, desenhos industriais, topografias de circuitos integrafos e indicações geográficas.
Tradicionalmente pode-se mencionar também a existência de três teorias que justificam a existência dos direitos autorias e de propriedade intelectual: (i) teoria do trabalho – formulada por John Locke, fundamenta-se na lógica de obtenção dos frutos do seu trabalho; (ii) teoria da personalidade – aprimorada por Hegel, baseia-se no fato de que um trabalho intelectual incorporaria a personalidade e a vontade de seu criador, sendo a propriedade uma extensão da personalidade; e (iii) teoria das razões econômicas – eliminariam uma falha de mercado causada pela dificuldade que o autor tem de receber uma retribuição pelo que produziu, estimulando assim a inovação.
Portanto, torna-se crucial estabelecer os limites e condições segundo as quais serão definidas as atribuições de direito de propriedade intelectual em obras que a sua criação pode ser complexa segundo os critérios verificados, especialmente a partir do seu desenvolvimento mediante o uso, em maior ou menor escala, de soluções tecnológicas dotadas de inteligência artificial. Questões relevantes podem ser postas a partir da problemática, tais como: a quem caberiam os direitos de autor? É possível atribuir direitos de propriedade intelectual à própria inteligência articificial? O que poderá ser considerado como violador dos direitos autorais de pessoas naturais a partir da sua utilização em novas produções desenvolvidas por IA?
Visando tratar especificamente este tema, em fevereiro de 2024 o United States Patent and Trademark Office (USPTO) publicou um guia (Guia) específico para orientar empresas e cidadãos norte-americanos acerca dos critérios a serem observados para o registro de obras que tenham em sua constituição o suporte de soluções baseadas em intelgiência artificial. Neste sentido, o primeiro ponto enfetizado pelo Guia é o de que as obras que contenham suporte de sistemas de IA não são automaticamente excluídas de proteção de propriedade intectual.
Igualmente, para a submissão e eventual aprovação de seus registros no respectivo órgão e, consequente, salvaguarda dos respectivos direitos oriundos da propriedade intelectual, estabelece o Guia os seguintes requisitos: (i) as obras que contenham suporte de sistemas de IA não são automaticamente excluídas de proteção de propriedade intectual; (a) os pedidos de patente para obras com suporte em sistemas de IA devem pontuar os nomes das pessoas físicas que contribuíram significativamente para a sua criação. Ainda, não devem apontar a IA como criadora, ainda que tenha participação fundamental no desenvolvimento; (b) contribuição significativa será considerada como: (b.1) contribuir de alguma maneira significativa para a concepção ou redução à prática da invenção, dar uma contribuição para a invenção reivindicada que não seja insignificante em qualidade, quando essa contribuição é medido em relação à dimensão da invenção completa; e (b.2) fazer mais do que simplesmente explicar aos verdadeiros inventores (IA) conceitos bem conhecidos e/ou o estado atual do estado da arte; (ii) ara analisar a viabilidade do registro, o foco deve ser a constatação da existência de significativas contruibuições humanas para a obra (Pannu Factors); (iii) observância de 5 princípios para identificar a existência da Pannu factor; e (iv) aplica-se especialmente a patentes de utilidade, plantas e design, podendo eventualmente se estender a demais áreas (USPTO, 2024);
Atualmente no Brasil, Vanessa Ferro pontua que para o registro de propriedade intelectual, entre os requisitos que devem ser observado está o carater originalidade da obra, característico dos sistemas jurídicos da civil law. Para ela, no entanto, ascepções de criatividade derivam da autoconsciência das atividades e experiências criativas, bem como da personalidade. Logo, o registro de obras criadas por IA no Brasil passaria pela constatação do requisito da criatividade propriamente dita da IA.
Silmara Chinellato, por sua vez, afirma que não é possível e/ou não se deve atribuir personalidade específica às máquinas, uma vez que esta seria uma caraterística essencialmente humana enquanto pessoa, remontando inclusive a regra de Hermogeniano (direito construído pelo homem e para o homem), respeitando inclusive o princípio da éticidade do Código Civil. Logo, também não é possível atribuir autoria, para efeito de tutela pelo direito de autor, às máquinas baseadas em IA.
Também Mafalda Miranda Barboza esclarece que, por maior que seja o grau de sofisticação de robôs ou mecanismos de IA, lhes faltam outros aspectos da inteligência humana, não sendo possível reduzir autonômia a uma capacidade de escolha determinada pela potencial combinação algorítimica gerada pela máquina.
Neste sentido, portanto, algumas seriam as possibilidades de atribuição de direitos autorais e de propriedade industrial para IA autonômas no futuro conforme Salomão e Somesom (2017, p. 175): (i) considerar a própria máquina como autora, mas atribuir a titularidade da patente e o exercício dos direitos decorrentes ao proprietário do sistema de IA, a seu programador ou ao seu usuário – Ryan Abbott defende que seja atribuída a quem propicie o resultado econômico mais efetivo; (ii) os programadores, criadores dos sistema de IA ou seus usuários, devem ser considerados como autores, gozando da titulares dos respectivos direitos; e (iii) eliminar todos os pretendentes, deixando o trabalho em domínio público – o programador teria direito aos benefícios decorrentes da criação dos sistemas de IA, mas não aos produtos secundários criados pela máquina.
Diante do exposto e frente as possíveis soluções trazidas, tem-se como aparentemente mais adequado a atribuição dos direitos relativos a propriedade intelectual e direito autoral aos indivíduos responsáveis pela criação da IA, bem como eventualmente aos próprios usuários que, por sua própria capacidade, valeram-se dos recursos disponíveis para inovar em obras literárias, artísticas etc. que atendam as requisitos de registro existentes. Isso porque ao passo de que não é possível se atribuir personalidade à própria máquina, condinção sine qua non para a configuração dos direitos personalíssimos de propriedade, também não há que se falar negação completa deste direito, afastando qualquer possibilidade de registro com a inclusão de todas as obras envolvidas em soluções de IA automaticamente em domínio público per se.
Com efeito, afastadas as demais hipóteses, deve-se conduzir a análise um juízo de valor acerca do responsável pela criação (na relação programador x usuário) e definir o seu grau de participação nos direitos de exploração das obras produzidas.
[1] Art. 10.1. do Acordo TRIPS: Computer programs, whether in source or object code, shall be protected as literary works under the Berne Convention (1971). Disponível em: https://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/27-trips_04_e.htm Acesso em: 18 jun, 2024.
[2] BRASIL. Lei 9.609/1998. Art. 12. Violar direitos de autor de programa de computador:
Pena – Detenção de seis meses a dois anos ou multa.
§ 1º Se a violação consistir na reprodução, por qualquer meio, de programa de computador, no todo ou em parte, para fins de comércio, sem autorização expressa do autor ou de quem o represente:
Pena – Reclusão de um a quatro anos e multa.
§ 2º Na mesma pena do parágrafo anterior incorre quem vende, expõe à venda, introduz no País, adquire, oculta ou tem em depósito, para fins de comércio, original ou cópia de programa de computador, produzido com violação de direito autoral.
§ 3º Nos crimes previstos neste artigo, somente se procede mediante queixa, salvo:
I – quando praticados em prejuízo de entidade de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou fundação instituída pelo poder público;
II – quando, em decorrência de ato delituoso, resultar sonegação fiscal, perda de arrecadação tributária ou prática de quaisquer dos crimes contra a ordem tributária ou contra as relações de consumo.
§ 4º No caso do inciso II do parágrafo anterior, a exigibilidade do tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, processar-se-á independentemente de representação.
[4] BRASIL. Lei 9.610/1998. Art. 11. Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica. […] Parágrafo único. A proteção concedida ao autor poderá aplicar-se às pessoas jurídicas nos casos previstos nesta Lei.


