10 ANOS DA LEI DE COTAS NO BRASIL
Neste mês de agosto de 2022, a lei nº 12.711/2012 conhecida como lei de cotas completa dez anos, está previsto no artigo 7º “No prazo de dez anos a contar da data de publicação desta Lei, será promovida a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas” (grifo do autor).
A revisão não significa extinção. Em um plano ideal todas as leis deveriam passar por revisões periódicas. Neste sentido tudo segue como planejando, a grande surpresa é que a revisão da lei se dá em um período de instabilidade de algumas instituições brasileiras, o mundo líquido de Zygmunt Bauman tem encontrado muito espaços em questões pétreas. Como nos mostrou a história, cenários de instabilidades econômicas e políticas são solo fértil para pensamentos individualistas, nacionalistas, racistas e até mesmo fascistas. Justamente neste contexto que se levanta a previsão legal de revisão da lei de cotas.
Embora a lei de cotas não faça mal a ninguém, a crise econômica, a banalização do mal explicado por Hannah Arendt, faz com que as pessoas externalizem seus desejos mais impuros, certas lideranças incentivam o que há de pior no ser humano, sua desumanidade. Neste diapasão, programas de avanços sociais e redução de desigualdades são responsabilizados pela má administração da máquina pública. A população se arrefece em relação a única ação que poderia tirá-los deste poço, as políticas públicas de redistribuição de renda e educação.
Nesse palco algumas lideranças políticas inflamam a população desviando seu olhar do que realmente precisaria ser visto. As cotas são arrastadas para o centro das atenções e culpadas por tudo de mau que está acontecendo, irracionalmente muitos passam a atacá-la, surgem vários movimentos elitistas querendo se aproveitar da situação e hastear sua bandeira de “O Grande Salvador da Pátria”.
Os argumentos são frágeis, mas, a retórica é boa. Isso leva muitos a serem enganados e a defenderem a extinção da lei de cotas, dessarte vários projetos de reforma e extinção da lei passaram tramitar no senado e em alguns Estados e municípios.
No Brasil existem dois principais grupos contrários às cotas: aqueles que se posicionam totalmente contra a lei de cotas e, aqueles que são parcialmente contra. Os primeiros, aversos a lei de cotas, compreendem a existência do racismo, entretanto acreditam que as cotas irão criar ainda mais desigualdades; afirmam que todos somos iguais e, por isso, não deve haver nenhum tipo de auxílio por parte do Estado brasileiro a qualquer pessoa ou grupo social.
O segundo grupo entende que o problema não é racial e, sim social. Defendem, por isso, cotas sociais, uma vez que o problema é a pobreza e não a cor da pele.
Ambos estão equivocados! Aqueles que entendem que todos nós somos iguais, cometem o erro do desconhecimento da lei e sua interpretação equivocada; o artigo 5º, caput, da Constituição Federal assegura mais do que uma igualdade formal perante a lei, mas, uma igualdade material que se baseia em fatores implícitos e explícitos. Dessa forma, não é correto limitar apenas à primeira parte que diz “todos são iguais perante a lei”. A igualdade deve ser formal e material.
A principal atividade do Estado é o bem comum, garantir que todos vivam bem. Para atingir este objetivo é salutar que este Estado intervenha em toda e qualquer situação que esteja gerando desigualdade. O preâmbulo da Carta Magna diz:
PREÂMBULO
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Não obstante estar previsto no preâmbulo da Constituição que “Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça” (grifo nosso). No artigo 3 da mesma carta:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
Com a simples leitura dos artigos iniciais da Constituição Federal percebemos que um dos fundamentos do Estado democrático é reduzir desigualdades, o que demostra o entendimento de que desigualdades existem, elas podem ser naturais ou artificiais (provocadas), em todos os casos elas devem ser erradicadas.
Destacamos também que só podem ser considerados iguais os elementos que, em comparação, não apresentam diferenças quantitativa e qualitativas entre si. Desse modo, socialmente, jamais poderemos falar em igualdade entre brancos, não brancos e negros.
Ultrapassado este ponto, enfrentaremos o segundo argumento.
Existem aqueles que defendem apenas as cotas sociais. Fazer somente esta defesa é o mesmo que afirmar que no Brasil não existe racismo. Nos parece ser uma afirmação já superada, inclusive pelo próprio Estado Brasileiro. O racismo é um fenômeno social e não biológico. Grosso modo não existem diferenças biológicas entre negros e brancos, entretanto, socialmente podemos afirmar que existe um enorme abismo entre brancos e negros.
Ainda que relevantes, as cotas sociais não iriam tocar no cerne da questão, elas não conseguiriam resolver um dos principais problemas Brasileiros, o racismo estrutural. O Brasil é atravessado diametralmente por questões raciais. Dificuldades econômicas todos tem, mas o racismo supera de longe estas questões. Um indivíduo das classes menos favorecidas, com um pouco de esforço e dedicação conseguirá obter educação e trabalho em lugares de comando e poder, um indivíduo negro dificilmente conseguirá educação e trabalho em lugares de comando e poder.
Por mais que o indivíduo negro se esmere seu destinado é a subalternidade, a invisibilidade do trabalho é condição sine qua non para que ele se mantenha em determinados espaços públicos e privados. Sem iniciativas públicas ou privadas de ações afirmativas, discriminações positivas ou políticas de cotas raramente se verá um homem ou mulher não branco em postos de comando ou poder. Michael J. Sandel já nos mostrou que o discurso meritocrático é uma falsa verdade imposta pelas elites hegemônicas para se manterem nos postos de poder, em prejuízo das mulheres, negros e pobres.
Por fim, cotas sociais são bem-vindas, mas não conseguirão eliminar as desigualdades, o único remédio capaz de combater as desigualdades à altura é as cotas raciais. Somente o ataque direto ao racismo será eficaz de nos curar deste câncer. Vale ressaltar que as desigualdades são sintomas de um corpo infectado de racismo, o combate requer um grande pacote de remédios para neutralizar e/ou eliminar suas ações.
Outrossim, é preciso defender a lei de cotas raciais porque ela é hospedeira da diversidade, intenso agente de combate as desigualdades. Se objetivamos uma sociedade livre, justa e solidária, como aponta a constituição federal, consequentemente, precisaremos de empresas que entendem que promover a diversidade é base fundamental.
Vivemos em um Estado Democrático de Direito. Em qualquer outro país no mundo onde regido pela democracia, ou seja, que está comprometido com o bem comum, com dignidade da pessoa humana e a paz social, isto significa garantir a possibilidade de uma vida digna, a autodeterminação, as cotas são uma possibilidade da dignidade educacional e, em um segundo momento, se esta for a vontade do cidadão, a chance do exercício de qualquer profissão.
O Estado só estará cumprindo sua função administrativa a seu povo se garantir a cada um o direito de exercício dos seus respectivos direitos fundamentais. Somente assim poderemos dizer que vivemos em um Estado democrático de direito.
Nesse contexto, em apertada reflexão, defendemos a permanência e renovação da lei de cotas raciais sob pena de retrocedermos a tempos difíceis em que a população negra não vislumbrava qualquer possibilidade de vida minimamente suportável.
Considerando a máxima que diz “a esperança é a última que morre”, acreditamos que nossos governadores, no momento certo irão se posicionar a favor do mínimo existencial para o seu povo, a “paz sem voz é medo”.