Em Cusco, Peru, repousa silente a “Pedra dos 12 Ângulos”, um bloco de pedras de cerca de 6 toneladas encaixadas pelos Incas com precisão inimaginável. Esse projeto, que não conta com nenhum desnível e nenhuma argamassa, ainda hoje desafia engenheiros e arquitetos e testemunha uma era em que a tecnologia não deixou manuais, restando-nos apenas decifrar, imaginar e teorizar.
Este desafio arqueológico inspira um paralelo contemporâneo com o Direito pois, também nós, operadores do Direito, somos convocados a decifrar um fenômeno tão monumental quanto invisível, traduzido no impacto da tecnologia sobre a ordem jurídica tradicional.
Como imaginar o futuro do Direito, diante de ferramentas que redesenham a noção de sujeito, prova, vontade, forma e tempo? E mais, como integrar essas novas ‘pedras digitais’ sem comprometer a estabilidade do modelo mental lógico normativo do direito tradicional, construída ao longo de tantos anos?
O ordenamento jurídico, como o conhecemos, não é apenas um conjunto de normas, mas uma verdadeira estrutura de “encaixes”, onde assentamos princípios, doutrina, jurisprudência e costumes que devem formar o “muro” apto a sustentar a coerência, a segurança, a previsibilidade.
A tecnologia, no entanto, traz blocos novos — algoritmos, dados, códigos autônomos — cujos formatos não coincidem com os encaixes jurídicos até então existentes. A tarefa dos juristas, operadores do direito e profissionais das legal techs, então passa a ser semelhante à dos operários incas. Compreender a lógica do “encaixe”, ainda que os instrumentos e os métodos tradicionais não se mostrem suficientes.
A inteligência artificial é sem dúvida a maior disrupção hermenêutica do direito. Como atribuir responsabilidade jurídica a sistemas que operam por aprendizagem de máquina?
É preciso, portanto, imaginar novos parâmetros interpretativos, talvez tão inovadores quanto os que, em seu tempo, permitiram compreender os primeiros sistemas jurídicos escritos. Mais do que aplicar o direito a esses instrumentos, o desafio é imaginar como o direito deve se adequar a eles — e como preservar seus princípios fundamentais (boa-fé, equilíbrio, função social) diante de mecanismos automatizados e autoaplicáveis.
Vale considerar ainda que diante da assimetria entre a velocidade da inovação e a lentidão normativa, surge a regulação responsiva, os sandboxes e o princípio da precaução como alternativas mais flexíveis.
Mas essas respostas não são definitivas. São, com o olhar de hoje, tentativas de decifrar o presente para melhor projetar o futuro — como hipóteses provisórias diante de uma realidade em mutação constante e veloz. Os operadores do Direito, aqui, assumem um papel mais próximo do intérprete do que do codificador.
O enigma deixado pela Pedra dos 12 Ângulos não é apenas técnico, mas filosófico: como um povo sem instrumentos modernos conseguiu tamanha precisão?
Do mesmo modo, o futuro olhará para nosso tempo e se perguntará: como o Direito, nascido em um mundo analógico, respondeu às demandas de um mundo digital? Qual é a conclusão diante de perdas e ganhos?
A resposta dependerá de nossa capacidade de interação e de reconhecer que a tradição não pode ser extirpada, mas é urgente sua integração a este novo mundo, onde o operador do Direito se apresenta como arquiteto do possível não para resistir ao tempo, mas para transcendê-lo. Para isso, será preciso reconhecer que as novas pedras — a tecnologia, os algoritmos, os contratos inteligentes — exigem novos encaixes sendo impositiva imaginação jurídica, coragem institucional e humildade interpretativa para dar forma ao novo sem desmoronar o antigo.

Clíssia Pena
Sócia fundadora e CEO do escritório Pena Carvalho Advogados, membro da Diretoria Jurídica da FIESP e cofundadora do coletivo SER.A.CEO.