A digitalização já é uma realidade no setor jurídico, mas a forma como ela é conduzida faz toda a diferença. Nesta entrevista, Claudio Wilberg, Sócio-Diretor da LegalManager, fala sobre como escritórios e departamentos jurídicos podem equilibrar tecnologia, cultura organizacional e gestão eficiente para alcançar resultados consistentes. Ele comenta os impactos da automação em áreas como Contencioso, Trabalhista e Tributário, explica por que a resistência à mudança ainda é um dos maiores obstáculos e e destaca que a verdadeira inovação acontece quando tecnologia, gestão e cultura caminham na mesma direção.
1. Na sua visão, quais áreas do Direito têm maior necessidade de controle e automação atualmente?
A transformação digital tem impactado significativamente a advocacia, criando demandas específicas por controle e automação em diversas áreas. Nossa percepção é que as áreas mais afetadas serão as áreas com grande volume de dados, principalmente no Contencioso.
No Trabalhista, com grande volume processual, cálculos complexos e constantes mudanças na legislação, a automação poderá auxiliar nos cálculos trabalhistas, no controle de prazos e audiências, e no monitoramento de jurisprudência.
Também no Cível, com seu alto volume processual e necessidade de monitoramento de movimentações processuais, a automação poderá ajudar na elaboração de petições padronizadas, leitura de Diários Oficiais e no controle de prazos e audiências da equipe.
No Tributário, pela questão dos valores muitas vezes elevados, a automação ganha uma urgência significativa pela complexidade tributária e consequências severas do descumprimento de prazos fiscais. Neste segmento, o monitoramento de prazos fiscais e o controle das obrigações acessórias são dois grandes pontos onde a automação pode ajudar.
No geral, independente da área, os principais benefícios são a redução de riscos (prazos perdidos, erro humano etc.), uma maior eficiência operacional (padronização de processos, otimização do tempo da equipe) e o aumento da competitividade com a redução de custos e maior capacidade de atendimento.
“O segredo é não ter que escolher entre operação e inovação, mas de criar estruturas que permitam ambas simultaneamente.”
2. Quais barreiras culturais ainda dificultam a digitalização da gestão jurídica?
“Aqui sempre foi assim”! Quantas dezenas de vezes já ouvimos isto em reuniões com clientes. Este medo de mudar, do novo, do diferente, faz com que escritórios demorem a adotar novas tecnologias e soluções. Barreiras culturais acabam restringindo a transformação digital mais do que limitações técnicas ou financeiras. Por ser um segmento considerado conservador e tradicionalista, a advocacia enfrenta resistência profunda a mudanças na gestão.
Vemos com frequência a manutenção de métodos manuais mesmo quando não são tão eficientes pois o conceito de mudar é mais assustador do que continuar fazendo a mesma coisa que os antecessores faziam.
De certa forma, uma das principais causas é ter os sócios seniores (50+ anos) no papel de tomadores de decisão enquanto os advogados mais jovens, conhecedores e empolgados com novas tecnologias, não têm muita voz neste processo. Também nesta linha, há um ceticismo em relação à eficácia de novas tecnologias e uma preocupação com a segurança dos dados, principalmente após o início da vigência da LGPD. Afinal, é mais fácil controlar pastas físicas e documentos impressos do que suas versões digitais.
Nesta linha de segurança, vemos um grande incômodo em relação a armazenamento “em nuvem”, softwares como serviço sem que o banco de dados esteja disponível, e uma desconfiança em ferramentas de colaboração online, sendo que os mais conservadores defendem com unhas e dentes a manutenção de servidores locais pois gostam de ver as luzes piscando nestas máquinas, que muitas vezes ainda são colocadas em locais de destaque no escritório para os clientes verem.
A digitalização por sua vez, turbinada pela pandemia, trouxe para os escritórios a possibilidade de expandir sua rede de atuação e até a contratação de profissionais de outras cidades, estados e até países, sem a necessidade de investimentos na infraestrutura local. A adoção de home office em tempo integral ou parcial, permite que escritórios possuam atualmente uma quantidade muito maior de profissionais do que tinham antes da pandemia, mantendo a mesma quantidade de mesas e cadeiras, aumentando o seu faturamento sem aumentar o seu custo de forma significativa. Até o tradicionalíssimo arquivo deslizante, presença obrigatória em escritórios montados até o início dos anos 2000, sequer entra em projetos de reforma ou de novas instalações dos escritórios modernos.
Também pressões de todos os lados aceleram este processo de digitalização como clientes exigindo mais eficiência, tribunais incentivando as pastas 100% digitais e a nova geração de advogados “nativos digitais” assumindo posições importantes na tomada de decisão em escritórios.
A contrapartida envolve (mas não se limita a) perda de oportunidades pela lentidão nas respostas, a desmotivação da equipe mais jovem e o tempo perdido em tarefas manuais como a localização de uma pasta no arquivo ou a não-localização de um documento que foi retirado e não recolocado na pasta.
Se desafiem! Reconheçam os “campeões” que trazem ideias novas! Experimentem! Tragam os jovens para o processo de decisão!
3. Como o setor jurídico pode acompanhar a evolução constante da tecnologia sem perder o foco nas demandas do dia a dia?
O setor sofre com o grande dilema de decidir o que é urgente e o que é importante. Nossos prazos inadiáveis, reuniões, solicitações de clientes (sempre “para ontem”) e o desejo de produzir peças com qualidade atrapalham a necessidade de estudar novas tecnologias e adaptá-las aos processos internos do escritório
No mercado, observamos algumas iniciativas que permitiram a exploração de novas oportunidades tecnológicas sem comprometer a execução das tarefas atuais. Por exemplo, ao optar por templates automatizados no Word, o tempo dedica 1 hora por dia durante uma ou duas semanas para montá-las, e o resultado será de algumas horas economizadas por dia de forma permanente.
Outra iniciativa bem-sucedida é a definição de um comitê de inovação que estudará e trará estas novidades para o escritório. Este comitê deve ser formado por Sócios (que darão um “peso” às sugestões/decisões) e por Associados entusiastas de novas tecnologias que dedicarão um pedaço de suas semanas estudando as aplicações destas tecnologias.
Um ponto importante neste processo de se manter atualizado com a tecnologia é a qualificação destas iniciativas: a priorização das vitórias rápidas (os americanos chamam de “low hanging fruits”) com alto impacto e baixo esforço, o planejamento dos projetos estratégicos de alto impacto e alto esforço, as melhorias incrementais (baixo impacto, mas baixo esforço) para serem feitas no tempo livre e a fuga dos projetos de baixo impacto e alto esforço. Nesta análise é vital se perguntar que problemas podemos resolver com tecnologia, o que os concorrentes estão fazendo e como as novas tecnologias podem afetar nossa área. As respostas a estas perguntas ajudarão no encaminhamento e direcionamento de projetos.
O segredo é não ter que escolher entre operação e inovação, mas de criar estruturas que permitam ambas simultaneamente, criando um processo contínuo e estruturado, integrado ao dia a dia do escritório, não competindo com ele.
4. O que considerar na hora de escolher uma tecnologia para o time jurídico, além do preço e da funcionalidade?
Novas tecnologias/soluções trazem consigo uma apreensão enorme e os escritórios que fazem escolhas mais acertadas analisam múltiplos fatores antes de tomar a decisão. Na hora de decidir, devemos considerar usabilidade, suporte, performance, custo total de propriedade (TCO), recursos atuais e evoluções futuras (roadmap de desenvolvimento), além da possível integração com outras ferramentas e a solidez do fornecedor. Cada fator deste deve ter um peso na análise
Na usabilidade, devemos sempre considerar se a solução segue um raciocínio lógico e se há um padrão em botões e cores para que o usuário não se perca em cada tela. É importante lembrar que a faixa de idades no escritório pode ser “dilatada” e a solução será provavelmente usada por todos, jovens e não tão jovens.
O Suporte é um ponto bastante delicado, principalmente quando falamos de sistemas maiores, como o sistema de gestão do escritório, o sistema de gerenciamento de documentos e o sistema de acompanhamento de processos. O parceiro deve estar pronto para estabelecer níveis de atendimento (chamado de SLA – Service Level Agreement) e pronto para cumprir estes prazos de forma a deixar o escritório ciente do que esperar. Também devem ser levados em consideração os recursos de treinamento (videoaulas gravadas, sessões no Teams/Zoom, manuais etc.) e a disponibilização de um “gerente de conta” ou equipe de implantação principalmente nas primeiras semanas de utilização (processo de “onboarding”).
Diversos fatores afetam a performance de um sistema, mas espera-se um tempo de resposta de poucos segundos para as operações mais comuns e uma disponibilidade praticamente constante. Fala-se muito em 99% de tempo disponível, mas se imaginarmos 30 dias vezes 24 horas, este 1% pode significar 7 horas sem sistema. Se isto acontecer no final de semana ou no meio da madrugada, dificilmente será um problema; mas será um enorme problema se acontecer em um dia de fechamento ou quando precisarem gerar relatórios para clientes.
Sim, a comparação do custo de aquisição e manutenção da solução tecnológica (TCO ou Total Cost of Ownership) precisa ser feita no período de avaliação das alternativas pois envolvem as licenças propriamente ditas (modelo de assinatura recorrente é o mais comum), eventual aquisição de equipamentos e treinamento da equipe, mas também um tempo de adaptação da equipe com queda na produtividade durante as primeiras semanas.
A solidez do parceiro e a comprovada experiência no segmento jurídico são pontos importantes a considerar no processo de seleção. Não hesitem em pedir referências para entenderem se atuam em escritórios do mesmo porte e há quanto tempo estão lá. Grandes chances de conhecerem algumas pessoas que já utilizam a ferramenta e que podem confirmar ou negar as informações passadas pelo vendedor.
No setor jurídico, em evolução acelerada nos últimos anos, é importante saber para onde o parceiro está direcionando os próximos investimentos. A liberação de novas versões e a divulgação de novas funcionalidades que ainda estão no desenvolvimento (roadmap) darão ao escritório uma visão de médio prazo, além de permitir que o próprio escritório colabore com sugestões, tanto no que já existe quanto no que será desenvolvido nos meses seguintes. Estas sugestões, junto com tendências de mercado (automação, inteligência artificial…), mudanças na legislação (tributos, formas de cálculo processual…) e mudanças de tecnologias (navegadores, sistemas operacionais, telas maiores, tablets e smartphones…) devem estar presentes no discurso do parceiro para que vocês fiquem tranquilos em relação ao futuro da solução escolhida.
5. Como envolver toda a equipe na adoção de novas ferramentas tecnológicas e evitar resistência às mudanças?
O maior desafio em implementações de novas ferramentas está na resistência humana e não em problemas técnicos. Estudos mostram que o sucesso destas empreitadas depende fundamentalmente de uma estratégia estruturada de gestão da mudança no escritório.
Desde o Sócio mais sênior até os Advogados Juniores e Estagiários, cada integrante tem seus medos, restrições e desejos em relação a estas novas tecnologias e, para a implementação bem-sucedida, é essencial que todas as camadas sejam ouvidas e envolvidas no processo. Isto sem falar da equipe administrativa, principalmente os integrantes internos ou externos que lidam com a tecnologia do escritório. Quantas vezes já vimos projetos que são trazidos sem o envolvimento dos especialistas que cuidam da saúde tecnológica do escritório e que simplesmente não seguem adiante por não se encaixarem nas tecnologias vigentes da empresa.
Os métodos para engajamento são variados e não necessariamente irão funcionar em todos os escritórios. Pesquisas anônimas onde a equipe pode expressar suas expectativas, seus receios e seus níveis de conforto com novas ferramentas são um primeiro passo; comunicação transparente para a equipe, apresentando uma visão geral da solução, quais problemas estão sendo abordados e como será o trabalho depois de sua implementação deve acontecer antes da implantação e treinamentos; e formação de comitê de mudança, composto por integrantes de vários níveis hierárquicos e de várias equipes para ter certeza que todos estão sendo ouvidos.
Uma vez escolhida a solução, sua implantação (roll-out) normalmente segue etapas definidas para garantir a participação de todos. Desde as primeiras semanas, quando normalmente um grupo piloto é envolvido para já demonstrar o sucesso de pequenas iniciativas, passando por uma segunda etapa de expansão controlada onde novos usuários fora do grupo piloto experimentarão por conta própria, até a adoção pela maioria do escritório com apoio dos dois grupos das primeiras etapas. Mais adiante, retorna-se para o comitê do projeto para validar o que está funcionando e o que pode ser melhorado na ferramenta.
Entretanto, todo este cuidado não é garantia de sucesso do projeto e é muito importante ficar atento a sinais de alerta como uma baixa participação em treinamentos, comentários negativos e pouco uso da solução escolhida. Nestes casos, é necessário ter paciência para entender os medos específicos e as razões por não estarem comprometidos com a solução.
Em resumo, as melhores práticas para implantação de novas tecnologias envolvem começar pequeno e expandir gradualmente, ter uma transparência total sobre o projeto comunicando desde o início a razão de sua implementação, oferecer canais diferentes de atendimento para perfis diferentes de usuários e envolver um grupo multidisciplinar desde o início.
Em contrapartida, projetos muitas vezes não avançam quando impõem mudanças sem explicação, quando tentam colocar tudo em prática ao mesmo tempo e quando desistem dos mais resistentes rapidamente, ignorando as diferenças e as expectativas de cada integrante da equipe.
Claudio Wilberg – Engenheiro, formado em Engenharia Eletrônica pela PUC/RJ e MBA por INSEAD, França. Sócio-Diretor da LegalManager, empresa que desenvolve sistemas de gestão para escritórios de advocacia e departamentos jurídicos. Professor do Curso de Gestão de Serviços Jurídicos do CEU (Centro de Extensão Universitária), da Unisinos (Porto Alegre) e da GVlaw na FGV/SP. Membro da Central de Serviços do Centro de Estudos de Sociedades de Advogados (CESA) e membro integrante do Centro de Estudos de Administração de Escritórios de Advocacia (CEAE). Experiência de mais de 25 anos na área de gestão jurídica, iniciada como Diretor de Tecnologia da Informação do TozziniFreire Advogados por cinco anos.