Ainda faz sentido estudar Direito no Brasil atual?

A pergunta título deste breve artigo é, naturalmente, uma provocação, pois não se pretende “parar de estudar o nosso direito”, e nem defender esse caminho – mas a questão certamente merece uma profunda e ampla reflexão, por parte de operadores do direito, faculdades de direito, Poder Judiciário, órgãos e entidades de classe, e da sociedade em geral.

No contexto brasileiro, é sabido que os cursos jurídicos foram criados por Dom Pedro I, logo após a independência do país, e que as carreiras jurídicas estão entre as mais tradicionais que temos, mas “muita coisa mudou” desde então. E sustentamos aqui que tenha chegado a hora de uma verdadeira “revolução” sobre o tema.

Profissões e carreiras têm sido criadas e “substituídas” ao longo do tempo (muitas delas por tecnologia/automação e outras por obsolescência), e talvez nenhuma delas esteja efetivamente “blindada e protegida”, tendendo mesmo a desaparecer; razão pela qual precisamos considerar “atualizações e reinvenções” periódicas, para que consigamos reduzir o risco de que nossa profissão seja tão automatizada, que as “futuras gerações” tenham justa dúvida sobre o que (e como) de fato faz sentido estudar.

Aprendemos nos “bancos das faculdades” que o Direito é uma ciência, e que é humana e não exata, além de que “cada caso é um caso” (e, portanto, específico e único), mas a tendência de automação que atualmente vivenciamos, incluindo todos os “vieses” dos sistemas jurídicos tecnológicos, chega para questionar esses princípios?

Desde a sua criação, cursos e faculdades de direito surgiram, áreas e ramos do direito foram criados, legislação e jurisprudência têm sido “ampliadas e atualizadas”, mas os grandes pilares do curso de direito têm se mantido bastante firmes – ao menos ao longo das últimas décadas.

E adicionamos ao presente “convite ao debate” que se a novas realidades e situações fomentaram a criação de novas áreas do Direito ao longo do anos, abrindo “teoricamente” mais “campos”, o tema chave deste artigo questiona se a “revolução atual” de fato será benéfica, ao Direito e à sociedade em geral.

Nesse contexto, destacamos que os cursos “on-line” (tanto em termos de aulas quanto de provas), a automação, as “audiências virtuais”, as chamadas “sustentações orais gravadas”, o trabalho “em home office”, os sistemas e softwares jurídicos, as “ferramentas de busca e de pesquisas”, os repositórios digitais de documentos, e (mais recentemente) a inteligência artificial, vêm “revolucionando” o estudo, as profissões/carreiras jurídicas, a prática do Direito, o mercado etc. E quais são, e serão, as consequências desse “novo mundo’?

Já se sabe “há muitos anos” que os cursos de direito precisavam mudar e ser atualizados, que ramos como o do direito corporativo (e os seus “soft skills”) demandavam um novo ensino jurídico, bem como que a “didática” aplicada tinha que ser reformulada, mas (aqui) sustentamos que, agora, a reflexão precise ser ainda maior – pois tanto no estudo, quanto na prática, é crescente o uso da tecnologia, de forma que muita gente já defenda que “faça mais sentido” estudar, e conhecer, a citada tecnologia (e a inteligência artificial), do que o Direito.

Talvez tenhamos chegado ao ponto de buscar um possível “equilíbrio” entre o que ainda se deva alocar a humanos na prática jurídica, para que partindo dessa questão (e resposta) se reflita sobre a formação das gerações de profissionais que atuarão nessa (nova) realidade.

Muitos teóricos já vinham defendendo desde a “virada do milênio”, com o incremento de softwares e sistemas jurídicos, mecanismos de busca/minutários, e a necessária (e constante) obsessão pela chamada eficiência (inclusive de custos), o que alguns denominavam de “o fim da advocacia”. E sempre nos alinhamos ao grupo que defendia (e defende) que a advocacia não acabou e nem deve acabar; mas que vem mudando cada vez mais e mais rapidamente.

A advocacia precisava se modernizar, e isso vem acontecendo, mas em que aspectos, e em que profundidade, para que não se corra o risco de desconfigurá-la por completo? E qual deve ser o limite, para que a sociedade (em geral) não sofra com as consequências de erros nessa nova concepção?

 A grande questão que aqui apresentamos é o que tende a ser efetivamente alocado a humanos, para que esses sejam treinados e formados – para as tarefas e as funções que lhes venham a ser colocadas.

Se questões, dúvidas, consultas e documentos menos complexos já nem são alocados a profissionais humanos, “acabando-se” com as questões simples (quase ou totalmente automatizadas), como serão formados os profissionais que “atuarão” em situações delicadas, sensíveis e que demandem muita experiência?

Quem foi aluno de cursos jurídicos brasileiros em meados do Século XX, por exemplo, ainda se recordará do curso e do trabalho “analógicos”, que já são totalmente diferentes atualmente; e, provavelmente, esteja acompanhando bem essa evolução/revolução, buscando o seu “novo lugar” na profissão.

O curso de graduação era presencial, com um corpo docente bastante tradicional, com base em aulas presenciais, e ainda com o uso de “quadro/lousa”, livros e provas “em papel” (as provas e os exames também); e com relação aos estágios, as tarefas eram fundamentalmente presenciais e “manuscritas”, e o treinamento era um misto entre acompanhar e apoiar (presencialmente) profissionais “mais seniores”.

Atualmente, grande parte das aulas (em algumas faculdades e cursos já são a totalidade) são à distância e “on-line”, e por vezes gravadas, sem que de fato exista efetiva interação entre alunos e entre esses e o corpo docente. Havendo, ainda, o fenômeno da “câmera fechada” – que em muitos casos gere casos em que as pessoas nem sequer se veem/conhecem.

No tocante ao estágio, por exemplo, na maioria dos casos, estudantes de direito apoiavam profissionais em tudo o que esses precisassem fazer, conversando (presencialmente), acompanhando em reuniões, pesquisas, audiências, diligências e preparando minutas de documentos (e “peças processuais”) mais simples – além de “visitarem” repartições públicas, fóruns/tribunais/delegacias/cartórios, e de “transportarem documentos”.

Esse era basicamente o treinamento, que já nem faz mais sentido, pois “praticamente todas essas tarefas/funções’ já são automatizadas.

Mas parte do treinamento (que está sendo “perdido”) ocorria ao se trabalhar “juntos”, vendo documentos juntos, questionando, argumentando, refletindo e redigindo, por exemplo.

Se muita gente aplaudirá a “evolução” e o fato de praticamente todo esse cenário agora ser considerado antiquado e ultrapassado, registramos que em grande parte qualquer saudosismo da era “pré-computação e automação” de fato já não faz sentido. Mas (dito isso) como devem ser (então) formadas e treinadas as “futuras gerações”, a começar por quem esteja estudando direito “agora”?

Muitos escritórios de advocacia e departamentos jurídicos, por exemplo, já se adaptaram de tal forma à nova realidade, que hoje necessitam de bem menos profissionais, pois a automação “faz muita coisa”, e o mesmo vale para as demais carreiras jurídicas, que cada vez menos precisam de tarefas presenciais e manuais.

Se os estagiários agora são digitais, como serão formados e treinados os “futuros” profissionais?

Advogados e advogadas agora se deslocam bem menos, pois reuniões e audiências podem ser realizadas “virtualmente”, permitindo que profissionais consigam realizar muitas mais delas no mesmo dia (do que antes). E para muitos operadores do direito, pesquisas, preparação de documentos e de peças, análises de materiais e de decisões, bem como o contato com “autoridades e repartições públicas”, e clientes, são bem mais rápidos, pois costumam ser digitais – e não mais demandam deslocamentos.

E, a automação tem ganho tanto espaço nas nossas vidas que muito do trabalho jurídico ainda alocado a pessoas humanas agora é, inclusive, realizado da residência do profissional (“em sistema de home office”), e não apenas muitas audiências agora são virtuais, como já se precisa lidar até mesmo (como mencionado acima), com as sustentações orais gravadas (que além de não serem presenciais, nesse caso, são inclusive sem interação); sem contar os julgamentos virtuais, em que votos não são mais necessariamente presenciados por todo o grupo (de julgadores).

Estamos migrando para um “direito totalmente automatizado”, que já não se necessite de humanos, e que a ciência passe a ser exata? E, se assim o for, como julgadores (também digitais?) farão para identificar casos “diferentes” se serão os algoritmos a definir essas questões?

Na mesma linha, equipes jurídicas em geral, em escritórios, empresas e repartições publicas há bastante tempo já não contam apenas com profissionais do direito, contando com pessoas formadas em diversas outras áreas do conhecimento; a ponto de muito se questionar acerca dos limites de atuação de uma ou de outra profissão.

Dessa forma: O estudo do direito ainda faz sentido na realidade atual? E o que será alocado aos estágios, se ao menos muito do que estagiários faziam agora é feito por “tecnologia”, e esses já nem mesmo estão no mesmo ambiente (físico) que seus “formadores/orientadores”, para com eles aprender?

Resistimos à ideia de que já não faça mais sentido estudar direito, sendo mais “recomendável” que se passe a estudar “tecnologia, sistemas e inteligência artificial”, mas sem dúvida a questão precisa ser debatida e avaliada por toda a sociedade – para que não se corra o risco de que “rapidamente” apenas “máquinas”, “robôs, sistemas, aplicativos e algoritmos” operem o direito e interajam.

E, para “piorar”, já existem muitos clientes, que por alegada economia, já não fazem mais questão de contratar bons profissionais humanos, aceitando ou até preferindo “sistemas”; sendo que muitos já se socorrem (de maneira crescente, e por vezes “arriscada”, da Inteligência Artificial, afastando a interação e atuação humanas.

Em muitos casos, apenas profissionais mais maduros e experientes, seniores e destacados ainda são (atualmente) procurados presencialmente, em função de seu conhecimento específico, o que reduz muito a atuação “humana” de profissionais jovens e em início de carreira.

Nesse cenário, e pelos motivos acima, insistimos, como serão treinados e formados os profissionais do direito, quem os “ensinará e orientará”, e como serão os estágios e os anos iniciais em cada profissão/carreira, se as “funções humanas” forem alocadas apenas a profissionais mais seniores?

O tema é importante (e sustentamos que seja também urgente), e acreditamos que várias das questões acima não tenham resposta simples, mas defendemos que essas perguntas e provocações ganhem espaço; pelo bem da advocacia, dos profissionais das carreiras jurídicas em geral, e da sociedade em geral. Enquanto ainda se consegue estimular pessoas mais jovens a estudar direito – em um universo em profunda e acelerada transformação.

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