Novembro negro e as diversas faces do racismo

A dificuldade da aceitação da sociedade brasileira no que diz respeito à existência do racismo, bem como de todos os seus impactos na vida da população negra, faz com que o trabalho pela efetivação de direitos e construção de medidas concretas de reparação andem a passos lentos.

Muito embora em 1888, com a promulgação da Lei Áurea, a escravização das pessoas negras tenha sido declarada extinta no país, o racismo – esse processo político-social e histórico – tem se desenvolvido de forma articulada com as sociedades. Mantendo a população negra exposta à violência e à injustiça ambiental; sem acesso a: educação, cultura, mercado de trabalho, espaços decisórios, dentre outros…

Esta flagrante situação pela qual a população negra brasileira é exposta ainda nos dias de hoje deixa nítido que aqui a abolição da escravatura se deu apenas no campo formal. Da mesma forma, a falta do respaldo do Estado e das instituições reafirma a dificuldade que o movimento negro enfrenta para implementar um direito antidiscriminatório no campo prático. Mas fato é, as denúncias têm ocorrido e as manchetes nos jornais aumentam:

Todavia, a não responsabilização das pessoas acusadas escancara o fato de que a dificuldade de combater o racismo na sociedade brasileira é histórica. Desde os anos 30 o movimento negro trabalha para que o Estado reconheça e criminalize o racismo formalmente.  Todavia, apenas em 1948, quando da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas (ONU), que proibiu expressamente a discriminação por raça e cor a movimentação ganhou força. Mas foi preciso um escândalo envolvendo uma importante bailarina e coreógrafa negra Norte-Americana e o gerente do estrelado Hotel Esplanada em São Paulo (na ocasião, sem saber de quem se tratava, o gerente impediu que a bailarina hospedasse no hotel por ser negra).

Assim, com o escândalo, o Deputado Afonso Arinos apresentou projeto de lei que tinha como objetivo a punição de práticas racistas no país. Destarte, em 1951 fora promulgada a primeira Lei Brasileira com este objetivo, a Lei Afonso Arinos. Apesar de histórica, durante todo o seu período de vigência, apenas 23 pessoas foram acusadas, sendo que somente 07 foram efetivamente condenadas[1]. Ratificando o que especialistas indicam: a lei tinha como objetivo a manutenção do status quo, uma vez que o Estado se sentiu exonerado no que tange ao desenvolvimento de novas medidas de combate ao racismo. Entendendo, por este raciocínio, que o movimento negro já não tinha razão de existir.

Diante da ineficaz legislação e apesar da tentativa de desmantelamento estatal, na década de 80 o movimento negro se fortaleceu e, graças à articulação política desenvolvida, obteve êxito em trazer a criminalização do racismo para a Constituição Federal da República, promulgada em 1988. Fazendo com que fosse possível, um ano depois, a promulgação da Lei 7.716 (Lei Caó[2]) que definiu o crime de racismo.

Muito embora a Lei Caó, ainda em vigência, seja mais abrangente que a Lei Afonso Arinos (revogada com sua promulgação), ela não é capaz de inibir as discriminações racistas por completo. Tudo graças aos vetos e às inúmeras emendas sofridas por seu texto original. Exemplo de emenda que teve sucesso e ampliou a aplicabilidade da referida Lei foi a tipificação da injúria racial como agravante ao crime de injúria, no Código Penal. Ora, ao transportar a matéria para legislação diversa, criando um tipo penal prescritível que concede à pessoa infratora pagamento de fiança e suspensão condicional da pena, o Estado brasileiro institucionalizou verdadeira manobra protetiva àquelas pessoas que cometam discriminações racistas. Tanto é que, no ano de 2018, quando do julgamento dos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 983.531, o Superior Tribunal Federal – STF equiparou a injúria racial aos crimes trazidos na Lei Caó. Ainda buscando impedir a desclassificação do racismo pela incorporação da injúria no Código Penal, em 2021, ao julgar o Habeas Corpus 154.248, o referido Tribunal reconheceu a imprescritibilidade do crime. Assim, muito embora exista flagrante necessidade no que se refere à atuação do estado brasileiro no combate ao racismo, bem como no desenvolvimento de um judiciário capaz de efetivar a lei, a procura por reparação judicial têm aumentado.

Segundo levantamento da empresa de jurimetria Datalawer, ações trabalhistas interpostas em razão de discriminações raciais têm crescido no país. De acordo com a o relatório, o racismo sofrido nos ambientes de trabalho fez com que a Justiça do Trabalho Brasileira recebesse cerca de 22.511 ações com pedido de indenização desde o ano de 2014. E, muito embora a reparação judicial seja de suma importância para o combate ao racismo sistêmico, é sabido que os danos causados às vítimas não são ressarcidos com indenizações.

Vivenciar discriminações raciais, direta ou indiretamente, tem efeitos de longo prazo nas saúdes física e mental de pessoas negras. E quando ocorrida na infância, ocasiona danos no desenvolvimento das crianças. De acordo com pesquisa realizada pelo Centro de Desenvolvimento infantil da Universidade de Harvard, a violência racista sofrida por crianças negras, desde sua forma mais ostensiva à mais sutil, impacta de forma direta em seus aprendizados, comportamentos, saúdes física e mental. Impedindo com que, na fase adulta, atinjam seus potenciais humanos e produtivos.

Os impactos que a convivência com o racismo ocasiona demonstram a urgência de um Estado atuante no combate a essa discriminação, construindo ações e políticas antidiscriminatórias. Contudo, dirimir marcas tão profundas do processo escravocrata vivenciado pelo país exige, dentre outros, a adoção de medidas concretas de reparação e de elevação da representatividade das pessoas negras em todos os espaços. Não haverá mudança, sem a participação das pessoas negras!


[1] Levantamento realizado pelo historiador Jerry Dávila.

[2] A Lei ficou conhecida por este nome em homenagem ao Deputado Carlos Alberto de Oliveira, seu autor.

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