Mês do Orgulho e o ataque às existências Trans na Assembleia Legislativa de São Paulo

Hoje, 30 de junho de 2023, nos despedimos de mais um mês do orgulho. Mês marcado no calendário internacional em razão da Rebelião acontecida no ano de 1969 em Nova Iorque, no bar Stonewall Inn. Naquela época, não eram raras as “batidas” policiais nos espaços frequentados por pessoas LGBTQAIP+ da região. Comumente, policiais entravam nestes locais, ameaçando, espancando e prendendo tanto a clientela, quanto as pessoas trabalhadoras daquelas casas, apenas por serem LGBTQIAP+.

Porém, em 28 de junho daquele ano, as pessoas que ali estavam reagiram por dias a mais uma destas operações realizadas pela polícia Nova Iorquina. Ato que foi considerado verdadeiro marco na luta pelo direito de ser quem é, sem medo de ser discriminado e sofrer repressão. Por isto, desde então, assumir-se orgulhosamente enquanto uma pessoa LGBTQIAP+ não caracteriza apenas expressão individual e natural da humanidade destas pessoas e sim verdadeiro ato de resistência contra a discriminação.

Por esse motivo, pessoas LGBTQIAP+ ao redor de todo o mundo, ocupam as ruas durante todo o mês de junho por meio das conhecidas “paradas” – que nada mais são do que desfiles alusivos ao ocorrido no Stonewall Inn. Eventos festivos, pois tornaram-se também espaços de acolhimento e compartilhamento de vida, mas que trazem a história de oposição à LGBTIfobia, trazendo como pano de fundo o combate à violência e o trabalho por melhores condições de vida a esta população.

Este ano, a 27ª Parada do Orgulho LGBTQIAP+ de São Paulo reuniu na Avenida Paulista cerca de 4 milhões de pessoas e tinha como tema “Políticas Sociais para LGBT+ – Queremos por inteiro e não pela metade”. Discutindo assim, a necessidade do desenvolvimento e criação de políticas públicas voltadas para esta população que, 54 anos após a Rebelião de Stonewall, ainda é assassinada e impedida do acesso a direitos básicos, apenas por ser quem é.

Ora, podemos ver que desde a década de 70 a população LGBTQIAP+ entendeu que para falar sobre políticas públicas, seria preciso se posicionar e cobrar da Administração Pública, do Estado, um olhar voltado para sua comunidade. Já que a Administração Pública está intimamente relacionada ao aparelhamento do Estado – o responsável por definir previamente quais serviços serão oferecidos para a satisfação das necessidades da população.

A administração pública transpassa a gestão da coisa pública, ela tem como função também a prestação e execução de serviços públicos. Serviços estes que precisam ser oferecidos de forma geral, mas, também, de acordo com a necessidade específicas dos grupos que compõe a sociedade. Por esta razão, políticas públicas devem ser entendidas em sentido amplo, como o meio de efetivação de Garantias constitucionais e promoção de direitos fundamentais. Ou seja, nada mais são do que verdadeiros mecanismos de combate às desigualdades.

Todavia, na contramão do que aquelas 4 milhões de pessoas trouxeram para Avenida Paulista este ano, em pleno mês de junho foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI na maior Assembleia Legislativa do país. Segundo consta, oficialmente, para investigar a atuação do Hospital referência no atendimento de crianças e adolescentes transexuais do Brasil, o Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. Não por coincidência, esta é a Casa Legislativa de um dos Estados mais violentos para a população LGBTQIAP+ no Brasil: São Paulo.

Esta CPI, para ser legalmente possível, fundamentou-se em suposta inadequação da atividade do Hospital às normativas do Conselho Federal de Medicina. Todavia, desde sua primeira reunião, ficou claro que seu objetivo é criminalizar as pessoas profissionais que ali trabalham e as famílias das crianças atendidas. Tudo, em razão de visões ideológicas, negacionistas e altamente discriminatórias. Prova disto foi a fala de um dos Deputados membros da comissão que, além de dizer que “criança trans não existe!”, falou “que criança trans é igual gato vegano, todo mundo sabe quem tá escolhendo, é.. quem tá fazendo essa escolha, né?! É o dono daquele pet.”

Além disto, em busca rápida no site da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, podem ser encontrados projetos de lei e moções de autoria do presidente, Relator e de membros da Comissão, versando desde repúdio à matérias televisionadas que tiveram como referência pessoa transexual, tentativa da proibição da utilização de linguagem neutra em instituições de ensino, até tentativa de imposição de multa pela realização de hormonioterapia, intervenções cirúrgicas e outros tratamentos de transição de gênero em menores de idade no Estado.

Todavia, merece ser ressaltado o que é fato notório, já investigado e declarado publicamente: o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) não realiza cirurgias de redesignação sexual em crianças ou adolescentes. Ao contrário, como estas intervenções só podem ser realizadas após os 18 anos (determinação do CFM), o atendimento e acompanhamento de menores de idade não inclui tratamentos ou procedimentos. Trata-se de assistência prestada à criança ou adolescente e à família por uma equipe multidisciplinar especializada, formada por psiquiatras, assistentes sociais, endocrinologistas e psicólogos.

Ou seja, a CPI instaurada não tem razão existir, senão a  ideologia de alguns dos Deputados que a compõe, que contrariam os fatos, a ciência, especialistas, a Organização Mundial da Saúde, dentre outras evidências científicas que demonstram a existência de bases biológicas comprovando não apenas a existência de humanidades trans – que são aquelas pessoas (crianças, adolescentes e adultas) que se identificam com um gênero que não corresponde ao sexo biológico designado no nascimento – mas que reconhecem a identidade de gênero como algo inerente a pessoa humana, não uma escolha! Mais, que a exploração do próprio gênero começa na infância (entre os 2 e os 8 anos), sendo colocada à prova na puberdade.

Percepções estas que são (ou deveriam ser) naturais para todo e qualquer indivíduo, quando, por óbvio, despido de vieses discriminatórios. E isso poderia ser feito a partir de perguntas muito simples:

“Você, pessoa cisgênera (que se identifica no gênero correspondente ao seu sexo biológico), precisou pensar em sua identidade de gênero e escolher ser cigênera? Você, pessoa heterossexual, precisou pensar na sua orientação sexual e escolher ser heterossexual? Ou tudo isso foi naturalmente reconhecido a partir do exercício de suas humanidades?”

Outra pergunta que merece ser respondida: “você escolheria ser uma pessoa transexual ou ter orientação sexual diversa da hétero em uma sociedade como a nossa? Que mata, bate, discrimina e deixa morrer pessoas LGBTQIAP+?” Tenho certeza que não.

Por isso é tão grave vermos o dinheiro público, que deveria ser utilizado para o desenvolvimento de políticas públicas, sendo usado para discriminar e negar a existência de famílias inteiras, criminalizando profissionais de saúde, propagando desinformação e fomentando a violência. Quanto mais no mês em que é celebrado o orgulho e a existência destas humanidades! É urgente que os representantes da população, absorvam suas competências institucionais primárias: ouvir e trabalhar para o povo.

Referências:

Transgender Identity and Experiences of Violence Victimization, Substance Use, Suicide Risk, and Sexual Risk Behaviors Among High School Students – 19 States and Large Urban School Districts, 2017.

Mental Health and Self-Worth in Socially Transitioned Transgender Youth.

https://www.uptodate.com/contents/gender-development-and-clinical-presentation-of-gender-diversity-in-children-and-adolescents/abstract/30,34-37

https://www.estadao.com.br/estadao-verifica/hospital-usp-cirurgia-transicao-genero/

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